A desenvolvedora Marília Suzart entrou na área de tecnologia da informação por um acaso, depois de ganhar uma bolsa de estudos de um curso técnico de informática, e acabou se apaixonando por programação. Em 2016, lendo os requisitos de uma vaga que ela desejava, conheceu o termo acessibilidade digital e, após pesquisar muito, começou a sua jornada pela causa.
Também foi pesquisando, anos depois, que ela acabou sentindo identificação com um artigo sobre pessoas autistas, o que resultou em um diagnóstico tardio de autismo. Nesse momento, seu interesse especial sobre acessibilidade digital e tecnologias assistivas fez ainda mais sentido como um hiperfoco.
Além de desenvolvedora, ela é autora do canal Accessibility 4DEVS nas redes sociais, que tem como objetivo ajudar quem trabalha na área na implementação de projetos acessíveis. Também atua em trabalhos voluntários relacionados à acessibilidade e é a mais nova voluntária do Movimento Web para Todos.
Na entrevista que fizemos com ela, você conhecerá um pouco mais sobre sua vida, jornada e trabalho, além de dicas para profissionais de desenvolvimento que querem aprender sobre acessibilidade digital e não sabem por onde começar.
WPT: Que tipo de dificuldade você encontrou nessa sua jornada de aprendizado?
Marília Suzart: Os conteúdos de acessibilidade não são acessíveis! Irônico, né?
Encontrei vários textos longos, cansativos e confusos. A internet tem um “mar de informações”, filtrar e juntar é como se estivesse montando um grande quebra cabeças. Eu sou do tipo de pessoa que não acho nada ofensivo o termo “não entendeu? quer que eu desenhe?”.“Sim! eu quero que desenhe, por favor!”. Quanto mais eu lia, mais confusa eu ficava, não conseguia conectar aquilo com a realidade do desenvolvimento.
WPT: Como é seu processo de aprendizado?
MS: Eu sempre tive dificuldades de aprendizado. Muitas pessoas aprendem na teoria e depois vão para a prática, mas por causa da falta de acessibilidade do ensino no geral, a forma que encontrei para driblar esses problemas é fazendo o inverso. Eu começo na prática, vou fazendo e, conforme a necessidade, busco a teoria pontualmente para resolver aquele problema que eu encontrei.
WPT: Você nos disse que encontrou resistência para desenvolver projetos com acessibilidade dentro das organizações onde trabalhou e muitas vezes as próprias equipes de desenvolvimento não se interessavam pelo tema. Por que você acha que isso acontece?
MS: São vários os motivos! A falta de contato com pessoas com deficiência, o tabu de que elas não trabalham, não consomem, o desconhecimento de que um dia, inevitavelmente, todos nós vamos precisar de acessibilidade, até pelo processo natural de envelhecimento. E o pior de todos: alguns gestores acreditam que, depois que a empresa estiver estruturada, com mais dinheiro em caixa, é só contratar uma consultoria ou um plugin “milagroso” e resolver os problemas da noite para o dia. O pensamento é “por que eu vou investir nisso agora se eu posso fazer depois de uma forma fácil?”. O que poucos sabem é que a acessibilidade é um processo contínuo. Quando esquecemos dela, a cada etapa de aprovação estamos implementando falhas, os chamados bugs. Durante a etapa de desenvolvimento, é mais barato resolver um bug. Quanto mais o tempo passa, mais eles se acumulam e fica cada vez mais caro.
WPT: Como hoje você mora e atua na Suécia, você acha que o mercado daí é mais maduro em relação à acessibilidade digital do que o nosso?
MS: Estava conversando com um brasileiro que é dono de uma consultoria daqui e ele me explicou que a maioria dos clientes não pede acessibilidade, logo, ela não é feita. Em resumo: aqui fora a preocupação pela acessibilidade é só de grandes empresas, como bancos tradicionais.
WPT: Como foi o processo de descoberta do autismo em sua vida? Qual foi sua sensação quando você recebeu o diagnóstico?
MS: Em fevereiro de 2021, li o livro “GAIA: Um guia de recomendações sobre design digital inclusivo para pessoas com autismo” para o meu trabalho mesmo e os termos que eu não sabia eu pesquisava no Google. Foi então que encontrei um artigo explicando o que é a Síndrome de Asperger. Comecei a lembrar de várias coisas da minha vida, quanto mais eu lia, mais eu me identificava. Comecei apenas em busca de autoconhecimento.
Depois, foi a vez de encarar o psiquiatra. Quando ele confirmou o diagnóstico de autismo e me entregou o relatório, eu fiquei inerte, congelei. Ele perguntou se estava tudo bem, se eu tinha alguma dúvida, eu só dei algumas respostas curtas de sim e não e fui deitar para processar a informação. Eu meio que já esperava, mas mesmo assim é diferente ter a confirmação “não é coisa da minha cabeça” e senti que naquele momento eu podia jogar fora todos os rótulos que recebi na vida, como “atrapalhada”, “chorona”, “mal educada” ”mandona” ou “teimosa”, porque eles se resumiam no simples fato de eu ser autista. Isso me trouxe alívio.
WPT: Você passou a entender melhor as barreiras de acessibilidade depois que soube que é autista? Por quê?
MS: Sim! Hoje, eu consigo entender que as dificuldades que eu enfrentava são por causa da falta de acessibilidade. Sempre enfrentei barreiras, meu processo de aprendizado sempre foi mais complicado e muitas coisas na internet me deixavam irritada ou me faziam ficar improdutiva e perder o meu dia, às vezes até a semana. Eu só não sabia o motivo, achava que o problema estava em mim. Agora, é bem mais fácil argumentar quando algo não está compreensível no meu trabalho.
WPT: O que é o Accessibility 4DEVS? Por que você resolveu criar esse canal?
MS: O Accessibility 4DEVS é um projeto para criação de conteúdos sobre acessibilidade com foco em ensinar pessoas desenvolvedoras a implementar a acessibilidade. Basicamente, ele nasceu da minha necessidade de encontrar conteúdos sobre acessibilidade didáticos (para pessoas autistas). Ele começou no Instagram e Linkedin, acabou de fazer 1 ano no ar, e, desde janeiro deste ano, eu expandi para o YouTube e Medium.
WPT: Quais dicas você daria a profissionais de desenvolvimento que querem aprender sobre acessibilidade digital e não sabem por onde começar?
MS: Assim como o seu editor de código de favoritos, faça do leitor de telas uma ferramenta de trabalho. Além de testar a própria aplicação, observe como os componentes nativos do sistema operacional se comportam, teste alguns sites e aplicativos famosos, aprenda com os erros e acertos deles. Sempre que for criar um componente, pesquise no Google como é a semântica correta do HTML5.
Conheça o Material React – uma biblioteca de componentes básicos e avançados para a construção de sistemas e site – e faça diversos testes: navegação sem o mouse, apenas com o teclado e depois com o leitor de telas. Você pode inspecionar elementos e tirar alguns insights. Depois disso, comece a explorar as regras da WCAG, elas farão mais sentido após você sentir as barreiras na própria navegação.
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