“A web ainda não é convidativa para as pessoas com deficiência”, diz Leonardo Gleison


Leonardo sorri. Ele tem olhos esbranquiçados, cabelos curtos e negros e usa casaco cinza e blusa azul.
Leonardo Gleison Ferreira durante a sua fala no evento de lançamento do Movimento Web para Todos. Foto: Victor López / Movimento Web para Todos.

Por Elza Maria Albuquerque*

Pense em uma pessoa dedicada ao próximo e que busca resolver o que precisa ser resolvido. Leonardo Gleison Ferreira é essa pessoa. Uma das inquietações dele é a falta de acessibilidade nos sites. “Sempre falo que a tecnologia pode solucionar os nossos problemas, mas isso não acontece ainda da forma que deveria ser”, afirma. 

Ele nasceu cego e diariamente encontra barreiras para navegar na web. Por trabalhar há mais de 10 anos com tecnologia e acessibilidade e ser um apaixonado pelo que faz, muitas vezes acaba conseguindo as informações que precisa, mas perde tempo e é impactado negativamente de diversas formas. “Como pode existir um mercado online e as pessoas mais beneficiadas, que são as pessoas com deficiência, não conseguem usar as plataformas porque elas não têm acessibilidade?”, diz. 

Leonardo é de Afogados da Ingazeira, município localizado no interior de Pernambuco. Seus pais largaram tudo por lá para cuidar do filho em São Paulo por causa da estrutura que a cidade oferece. “Meu pai pensou bastante nisso. Sabemos que outras pessoas com deficiência na minha cidade natal que não fazem nada, vivem de aposentadoria, de benefício, e não têm perspectiva. Isso faz parte da cultura do povo. Para muitos que conheço é um absurdo que eu trabalhe, por exemplo”, conta. 

Em São Paulo, Leonardo teve a oportunidade de fazer diferente. Hoje ele é técnico em Tecnologia Assistiva da Laramara – Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual. Hoje, é também um dos embaixadores do Movimento Web para Todos. 

Ele é casado com Camila (que também é cega) e, em 2019, se tornou pai do Gustavo. Em entrevista para o Movimento para Todos, Leonardo contou sobre sua história de vida, como se relaciona com a tecnologia e com as barreiras que encontra no dia a dia tanto no mundo on-line quanto no off-line. 

Movimento Web para Todos – Como você lida hoje com a web e as barreiras que encontra?
Leonardo – Meu nível de uso de tecnologia é mais alto. Está acima do que a média das pessoas com deficiência visual têm. Isso porque muitos não têm acesso à tecnologia ou não têm histórico de  uso ou usam a tecnologia, no máximo, para mexer no celular, mandar mensagem no WhatsApp. Eu uso a tecnologia profissionalmente. Isso reduz um pouco o impacto das barreiras. Costumo contornar problemas de acessibilidade muito difíceis nos sites.

O que acontece com os colegas que não têm essa habilidade: eles acabam sendo impedidos de acessar uma  tecnologia que poderia mudar a vida delas. As pessoas precisam se vestir, se alimentar e comprar produtos, mas, muitas vezes, são barradas desses meios e acabam fazendo as coisas pela forma antiga, que é indo às lojas. Isso acontece mesmo quando o mundo está seguindo na direção contrária, das pessoas irem cada vez menos às lojas.

Vai chegar um momento que vamos ter menos estabelecimentos físicos para resolver as coisas, o dinheiro vai ser digitalizado. Caso não façamos nada, como vai ser o acesso das pessoas com deficiência? Os preços estão melhores nas lojas online. Como será se só tivermos serviços online sem acessibilidade?

Gosto de tratar essas questões com bom humor. Ser grosso não resolve e acaba colocando barreiras para você conversar com as pessoas. E quando não conversamos, não conseguimos resolver os problemas. Aprendemos muito quando abrimos espaço para as pessoas falarem. 

Movimento Web para Todos – De que forma as barreiras de navegação impactam sua vida e a de milhões de pessoas com deficiência? 
Leonardo – As barreiras existem por vários motivos. Primeiro, porque não existe consequência imediata para o site que tem essas barreiras. Vemos que questões que são mais caras, como proteção de dados, são tratadas com mais seriedade por causa do custo que gera. A acessibilidade digital não tem custo aparente. Ela funciona como aquilo que ela deixa de ganhar. O valor é alto também, mas não é sentido no bolso. A Lei Brasileira de Inclusão precisa ser regulamentada e ter algum tipo de multa para resolver esse problema porque só na conversa não está resolvendo muito. 

Um exemplo prático: há sites do setor aéreo em que a ferramenta de acessibilidade simplesmente não serve. É algo visual. Na prática, quando você consegue fazer uma compra em qualquer empresa aérea, é comum sabermos que muitos não conseguem fazer isso de forma autônoma porque são tantas barreiras que você não consegue fazer a compra.  

Quando uma pessoa com deficiência não consegue comprar, principalmente aquelas que não têm alguém junto, elas precisam sair de casa para encontrar uma agência de viagens. Você precisa sair fisicamente da sua casa, enfrentar os obstáculos arquitetônicos e comprar uma passagem que não é mais barata porque os melhores preços estão nos sites. Somos discriminados também na questão dos preços. 

Muitas vezes pago mais caro pelos produtos por causa disso. A leitura nesse contexto costuma ser assim: “Você não tem deficiência, você tem direito a desconto. Você tem deficiência, não tem direito a desconto”. Essas coisas afetam a gente tanto na vida prática quanto mentalmente. Isso leva a gente a acreditar que não temos valor. O mercado força isso porque ele acredita que você com deficiência não agrega valor para o negócio. 

É uma questão de convivência. Nem tudo é má vontade. Muitas vezes é falta de conhecimento também. O principal aspecto que afeta é a questão de tempo. Menos tempo vou dedicar para fazer outras coisas. Por me impactar na questão de tempo, vou pensar duas vezes. O que vai acontecer: vou procurar caminhos para resolver  o problema. Você vai ter algum custo. Quando não estou disposto a dedicar meu tempo para resolver, eu tenho que fazer algo a mais. Entrei em um site, não consegui e vou ter que sair pra comprar. E vai ser mais caro. Isso gera estresse, ansiedade. 

Algumas barreiras que encontro: a falta de descrições de imagens – encontro com muita frequência, descrição ruim do produto, o uso do sistema não é projetado para ter certa fluidez, conta com usabilidade ruim, e acredito que essas são as principais. Excesso de links, os sistemas em geral não tem foco na tarefa que você está fazendo. Do lado, tem banner abrindo, ofertas novas. Sites de notícias têm muito isso. É por isso que uso o Twitter para ver as notícias para não ter que acessar os sites e páginas iniciais – são horríveis porque são mal construídos e têm muitos links. Dá para melhorar muito.  

Movimento Web para Todos – Como foi a questão da navegação na web para realizar compras na preparação do nascimento do seu bebê? Encontrou muitas barreiras? Quais? 
Leonardo – Foi impossível comprar as roupas pela web com autonomia. Isso porque a descrição não é adequada e não tivemos segurança do que iríamos comprar. Nós só conseguimos comprar pela internet com a colaboração da família. O caso mais icônico foi quando fomos comprar o berço e a cômoda do quarto.

Estávamos vendo algumas coisas pela internet, as pessoas falaram do material pra gente. Pensamos: vamos em uma loja física para ver. Fomos em várias lojas e, na maioria delas, havia só uma opção de berço, enquanto outras não tinham opções. Isso já é um efeito das lojas online. Na última loja, olhamos o único berço e dissemos que não iríamos comprar.

E eles falaram que tinham opções no catálogo. A descrição do produto era horrível, mas naquela ocasião estávamos com meu sogro e minha sogra e eles fizeram uma descrição melhor. Eu acabei falando pra gente comprar pela internet por causa do preço. Mas a mulher falou: “Vocês não vão ver o produto”.  

E eu falei: “Se é para comprar sem ver, pelo catálogo ou pela internet, eu prefiro comprar pela internet e pagar mais barato”. E, infelizmente, tive que contar com a ajuda de alguém que enxerga. 

Movimento Web para Todos – O que perdeu, o que ganhou e qual é o balanço geral dessa experiência? 
Leonardo –  Não perdemos muita coisa porque delegamos tarefas. Perdemos a autonomia, a escolha das coisas. Perdemos tempo. No final das contas, o saldo para a família foi positivo, mas a questão da acessibilidade foi muito ruim.. 

Movimento Web para Todos – De que forma a falta de acessibilidade no sites o impede de ter uma vida melhor? 
Leonardo – Quando as empresas não consideram as pessoas com deficiência como consumidoras, elas deixam de oferecer um serviço de qualidade. Isso impacta porque não temos os mesmos direitos e não nos sentimos com direitos iguais. Não nos sentimos parte do todo, não sentimos como cidadãos que fazem parte.

Deixamos oportunidades de lado porque achamos que aquilo talvez não seja para nós. Acontece com todo mundo que tem deficiência e passa por essas situações. De uma forma ou de outra acaba sendo traumático. A web ainda não é convidativa para as pessoas com deficiência. Não nos sentimos confortáveis em comprar e contratar serviços. 

Movimento W eb para Todos – Qual é o impacto do trabalho do Movimento Web para Todos para esse processo de transformação?
Leonardo – Está sendo transformador no sentido de que o movimento é a organização que mais fala sobre acessibilidade, que mais está penetrando nas empresas com abordagem e forma diferenciada. Nos últimos anos, se não fosse o movimento, teríamos problemas de comunicação, de levar essa informação para as empresas como um todo. Pior do que isso, estaríamos com opiniões erradas que não são necessariamente o que a gente acredita. 

Acessibilidade é todo um processo de construir um site desde o começo, é tratar a pessoa com deficiência como consumidor. Quando você o considera consumidor, você não quer perder esse cliente. O movimento tem levado essa mensagem para as pessoas. É a mensagem correta, de cuidar de ponta a ponta.

É isso que faz o movimento tão importante porque não tem ninguém com peso que consiga reverberar a mensagem de forma tão pragmática. Sem o movimento, teríamos um apagão sobre esse tema no país. Pra mim, o Movimento Web para Todos é quase um filho. 

Movimento Web para Todos – Qual é o panorama em relação à acessibilidade digital? 
Leonardo – A situação está melhorando. Há mais iniciativas nacionais, principalmente nos apps. O app já nasceu para ser acessível, mas está melhorando significativamente. As maiores e melhores iniciativas ainda são as internacionais.

Percebo que o ambiente está difícil para trabalhar por causa da política. Mas quando passarmos dessa fase, que é difícil, quando a gente se adaptar a ela, conseguiremos retomar e dar uma acelerada. Por enquanto, vamos precisar lidar com a empresas como estamos lidando: incentivando e conscientizando.

*Elza Maria Albuquerque é repórter e analista de comunicação do Movimento Web para Todos.

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