
Por Natália Alcantara*
“Eu sou uma mulher branca, de pele clara, tenho os cabelos louros curtos, de corte chanel, com mechas mais claras, olhos verdes, uso óculos de armação meio transparente. E eu estou usando hoje uma blusa, uma camiseta listrada, branca e preta. E eu estou aqui no meu escritório, tendo ao fundo uma estante, repleta de livros e pequenos objetos de decoração. E chama a atenção uma carreira de ursinhos, que é uma coleção que eu tenho. Alguns já foram comidos pelo meu cachorrinho Dito.”
Não é por acaso que este texto começa com a descrição da nossa entrevistada. É uma boa prática e importante forma de mostrar, na prática, o que é a audiodescrição, recurso de acessibilidade comunicacional que transforma imagens em palavras e garante que pessoas com deficiência visual possam participar plenamente de experiências visuais, inclusive no ambiente digital.
O tema foi o centro da mais recente reunião da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos, que contou com a presença da Lívia Motta, uma das maiores referências brasileiras no assunto. Audiodescritora e formadora de profissionais desde 2004, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP, Lívia também é fundadora da empresa Ver com Palavras, responsável por levar a audiodescrição a espetáculos, eventos, produtos audiovisuais, livros, casamentos e até partos.
Durante o encontro, ela compartilhou com o grupo não só sua trajetória, mas também conceitos fundamentais, boas práticas, normas técnicas e reflexões sobre os desafios atuais da área, com especial destaque para o universo digital.
O que é a audiodescrição e por que ela vai muito além do que se imagina
“A audiodescrição é uma tradução intersemiótica”, explicou Lívia. “Ela transforma o que é visual em linguagem verbal, tornando acessível o conteúdo de obras, espetáculos, vídeos e imagens para pessoas cegas ou com baixa visão.”
O recurso, no entanto, beneficia um público muito mais amplo, como pessoas idosas com perda de acuidade visual, com deficiência intelectual, dislexia, TDAH e autismo. Afinal, todo mundo pode se beneficiar de uma narração que amplia o entendimento do que está sendo visto.
Lívia contou, por exemplo, que espectadores videntes de óperas no Teatro Municipal de São Paulo relataram compreender muito melhor o espetáculo quando experimentaram o fone de audiodescrição: “Uma senhora me disse que já tinha assistido à ópera Carmen em vários lugares do mundo, mas foi a primeira vez que realmente entendeu tudo o que acontecia em cena.”
Normas, práticas e “pecados capitais” da audiodescrição
No Brasil, o trabalho segue orientações da NBR 16452/2016, norma da ABNT que define critérios para produções audiodescritas. Mas, segundo Lívia, o campo está em constante movimento: “Não é algo estático, é um processo vivo, que se adapta aos diferentes tipos de espetáculo, gênero e contexto cultural.”
Entre as boas práticas essenciais, ela destacou:
- Preparação e estudo da obra antes da descrição.
- Objetividade e clareza, buscando transmitir o essencial sem excesso de palavras.
- Respeito ao público e à obra, garantindo que a pessoa com deficiência visual tenha acesso à mesma experiência artística, sem sonegação de informações.
E, entre os “pecados capitais”, não hesitou em mencionar que:
- Audiodescrição gravada em espetáculo ao vivo. Isso é um erro grave, porque quebra o sincronismo e impede que o público acompanhe a experiência real do momento.
- Falta de divulgação da acessibilidade. Não adianta incluir o recurso se o público que precisa dele nem fica sabendo.
- Congelar imagens em vídeos só para dar tempo de inserir a descrição, porque isso distorce a obra original e desrespeita o trabalho artístico.
- Nas redes sociais, as pessoas divulgam as artes misturando a informação com a audiodescrição. Isso é um pecado, porque o “flyer acessível” fica extremamente longo e cansativo, e a pessoa com deficiência visual precisa garimpar a informação.
Audiodescrição também é digital
O debate se voltou, então, ao espaço que mais interessa ao Movimento Web para Todos: o digital. Lívia foi enfática ao dizer que a acessibilidade de um espetáculo começa muito antes da estreia. Ou seja, começa na internet, nas peças de divulgação, nos vídeos promocionais, nas redes sociais.
“É importante não misturar a descrição da arte com as informações principais”, alertou. “A pessoa precisa primeiro saber o que é o evento, onde e quando acontece, e só depois, se quiser, ouvir ou ler a descrição visual da peça gráfica.”
Nos vídeos, ela sugeriu duas possibilidades: audiodescrição inserida no próprio arquivo, sempre que possível. Ou então audiodescrição em texto, como alternativa prática para conteúdos rápidos, como stories e postagens em redes sociais.
Mas há um cuidado essencial: “Nada de congelar a imagem ou alterar o ritmo do vídeo para ‘caber’ a descrição. A ideia é que o recurso amplie o entendimento, sem comprometer a obra.”
Lívia Motta responde o que você precisa saber sobre audiodescrição no ambiente digital
Depois da troca inspiradora durante a reunião da Liga Voluntária, seguimos o papo com Lívia Motta em uma entrevista exclusiva. Confira a seguir a nossa troca, onde ela explica como a audiodescrição pode (e deve) fazer parte de toda experiência acessível.
WPT: Começando com vídeos institucionais ou promocionais (incluindo de venda de produtos) publicados em sites e redes sociais: quais são as boas práticas de audiodescrição nesses casos?
Lívia Motta: Os vídeos institucionais ou promocionais, e também os comerciais deveriam ter preferencialmente a audiodescrição gravada e inserida no vídeo, com elaboração de roteiro, revisão feita por pessoa com deficiência visual, aprovação pelo cliente, gravação e edição. Afinal, pessoas com deficiência também são consumidoras de produtos e serviços e têm direito ao acesso à informação. Não recomendamos colocar todas as informações no início do vídeo em tela preta, já adiantando todas as informações sobre as cenas e personagens. Isso desconfigura o vídeo, fica completamente fora da estética do produto audiovisual. Se não for possível fazer a inserção da audiodescrição no vídeo, sugerimos fazer um texto com a audiodescrição, resumindo as cenas e imagens mostradas. Desta forma, a pessoa com deficiência visual terá as informações necessárias para seu entendimento e contextualização.
Confiram os exemplos abaixo:
Audiodescrição vídeo SOS QUASE TUDO: no Teatro Paulo Eiró, após o espetáculo, a Bruxa Palhaça Sensitiva conversa com a plateia. Uma das espectadoras, Clery Florez dá seu depoimento sobre o espetáculo. Elaine Sampaio, intérprete de Libras, sinaliza ao lado de Priscila Jácomo. São mostradas algumas cenas do espetáculo com o intérprete Fabiano Campos e com a audiodescritora Andréia Paiva. O cenário é composto por muitos potes de plástico de diferentes tamanhos com os títulos: ansiedade, angústia, medo, amor, nó na garganta, dentre outros.
Audiodescrição vídeo CLOWN BARET: Os palhaços JP e Jurubeba giram bandeirinhas coloridas no picadeiro do Circo Pandavas, repleto de pessoas nas arquibancadas. Eles passam no meio da plateia e vão saindo da lona vermelha. Parecem procurar alguém no pátio lá fora. Caminham em direção a uma estradinha de terra no meio de um gramado e vegetação.
Exemplos de audiodescrição em comerciais:
- Bradesco Seguros
- Homenagem aos craques de todos os dias
- Entre nós você vem primeiro
- Amigo Secreto Real
- Medina e Poseidon
- Bravoz Ubuntu
- Bolinha
WPT: Quais as boas práticas para descrever imagens de produtos?
Lívia Motta: Geralmente em lojas virtuais, os produtos são apresentados com suas características e informações necessárias para que o cliente efetue a compra. São informações bem detalhadas. É importante completar as informações visuais sobre o produto como cores, formatos e outros detalhes que permitam a visualização do produto, complementando as informações que já foram dadas e também traduzindo termos mais técnicos ou mesmo os jargões de cada área. Quanto mais fluida e informativa for o detalhamento do produto, incluindo aqui a audiodescrição, mais chances e desejo de compra os consumidores com deficiência visual terão.
WPT: Tem sugestões para unir descrição do produto e técnicas de SEO no mesmo campo de texto alternativo? Ou você não recomenda colocar no campo de texto alternativo informações que não sejam estritamente sobre a descrição do produto?
Lívia Motta: Penso que ambas podem ser combinadas, tanto a descrição do produto como as técnicas de SEO, para maior visibilidade do produto e facilitar os mecanismos de busca.
WPT: Quais as boas práticas tanto para fotos pessoais quanto corporativas?
Lívia Motta: As orientações abaixo podem ajudar na elaboração da audiodescrição de fotografias para redes sociais:
- Identificar o tipo de imagem (fotografia, desenho, charge, tirinha, história em quadrinhos, aquarela, óleo sobre tela).
- Dar uma ideia geral do que está representado na imagem para depois passar para os detalhes.
- Mencionar o tipo de foto: fotografia colorida, fotografia em preto e branco, foto-montagem.
- Mencionar o enquadramento: em primeiro plano (do peito para cima), em close ou primeiríssimo plano (rosto); em plano detalhe (bem de perto para objetos); plano médio (da cintura para cima); plano americano (dos quadris ou dos joelhos para cima). Se não quiser usar o nome técnico do enquadramento, pode optar pela definição do enquadramento.
- Fornecer elementos para a construção da interpretação.
- Não traduzir opiniões pessoais.
- Organizar os elementos descritivos em um todo significativo.
- Cores e outros detalhes deverão ser mencionados.
- Os orientadores da audiodescrição são: o que/quem, como, onde, quando.
- Quando houver pessoas na paisagem, o texto deve pode ser organizado a partir do sujeito da ação, o que facilita o encadeamento dos elementos imagéticos.
- Sumarizar e evitar o excesso de informações desnecessárias.
- Usar artigos indefinidos quando é a primeira vez que aparece determinado elemento ou pessoa.
- Usar artigos definidos quando já forem conhecidos.
- Usar o tempo verbal sempre no presente.
- Mencionar as imagens de fundo.
- Em fotografias de pessoas, mencionar quantas e quem são as pessoas fotografadas. Se possível descrever características físicas e vestimentas desde que o texto não fique muito longo.
- Iniciar a descrição da seguinte maneira: fotografia colorida/em preto e branco, em primeiro plano (do peito para cima), em plano médio (da cintura para cima), em close, de…(mencionar o nome do personagem ou da pessoa). Localizar onde a pessoa está e caracterizar o lugar, quando isso for possível. (Motta, 2016).
WPT: O que é recomendado fazer em caso de carrossel com diversas fotos: descrever o geral, detalhes de cada foto?
Lívia Motta: Quando postarmos diversas fotos em carrossel, já damos uma visão geral do número de fotos e o que retratam. Em seguida, vamos fazendo a audiodescrição de cada foto, tomando cuidado para que o texto não fique muito longo. No Instagram @vercompalavras, temos muitos exemplos desta organização. Prefiro colocar a audiodescrição aberta, para todos verem do que colocar em texto alternativo, visto somente pelos usuários dos leitores de tela.
A seguir, estão alguns exemplos práticos:
No Museu do Ipiranga, no domingo, 7 de setembro, foi dia de festa, Museu em Festa com inúmeras atrações com audiodescrição e Libras.
#Audiodescrição: carrossel com sete fotos de atrações e do público. Foto 1: Fazendo a audiodescrição do Coral da USP com Adriana Barsotti e Yasmin. Foto 2: Audiodescrição do Coral da USP com Cidinha Cardoso. Foto 3: César Tunas com Yasmin e Adriana Barsotti assistem a uma apresentação de um mágico com cartola e bolinhas vermelhas no jardim do museu. Foto 4: Com Adriana Barsotti e Yasmin e o simpático grupo da Pernacoteca: Natália, Robson e Leo. Foto 5: Com os queridos César Tunas, Rosangela Fávaro, Angela Lima e Giovana, equipe de trabalho. Foto 6: Público assiste ao Coral Heliópolis na arquibancada. Foto 7: Grupo visita o bosque do museu com guia e a audiodescritora Rosangela Fávaro.
Post 2 – World Blindness Summit
Grandes encontros no 11º Encontro Mundial da Deficiência Visual no Distrito Anhembi, em São Paulo.
#Audiodescrição: o carrossel com quatro fotos mostra Lívia Motta com amigos, palestrantes e audiodescritoras. Foto 1: com as audiodescritoras Carolina e Flávia Mariano e os participantes da mesa sobre acessibilidade cultural: Ednilson Sacramento, João Maia, Márcia Bamberg e Sara Marques. Foto 2: com as audiodescritoras Milena Eich de Caxias do Sul e Raquel Carissimi de Curitiba, as três sorridentes assistindo uma das mesas. Foto 3: Com Celso Nobrega de Fortaleza, Felipe Monteiro que participou da mesa de audiodescrição, Roberto Leite e Raquel Carissimi de Curitiba, após a apresentação de nossas palestras na mesa de audiodescrição. Foto 4: com um grupo grande da Sociedade Bíblica do Brasil na saída do Anhembi.
Em visita à Casa Cor 2025, com audiodescrição, no Parque da Água Branca, com um grupo de 15 pessoas com deficiência visual e acompanhantes, Simone Pontin e Renato Durval da Ver com Palavras. Acessibilidade é isso, pode conhecer novas tendências e materiais, visitar os ambientes com as informações necessárias, poder fazer uma imersão no universo da arquitetura.
#Audiodescrição: carrossel com 7 fotos da mostra e da casa projetada por Marina Linhares. Foto 1: o grupo todo reunido sobre um deck de madeira com exuberante vegetação ao fundo. Foto 2: Na entrada, passando ao lado de um lago redondo artificial com plantas aquáticas. O grupo usa fones e receptores para acompanhar a visita monitorada com audiodescrição. Foto 3: Em um hall de entrada com projeção de estrelas nas paredes. Os participantes escutam atentamente à audiodescrição do espaço. Lívia usa headset e segura uma prancheta. Foto 4: Dentro da casa projetada por Marina Linhares com piso de porcelanato e teto com forro de linho, móveis confortáveis, objetos decorativos e obras de arte. Foto 5: O grupo visita o espaço, o living, espaço gourmet com louceiro e bar. Foto 6: O mapa tátil do espaço com letras ampliadas pretas e braille, da Casa do Braille, com audiodescrição, é explorado por uma pessoa com deficiência visual. Detalhe da mão tocando os ambientes. Foto 7: Nádia Silva e sua filha Erica exploram a bancada do espaço gourmet.
A conversa com Lívia Motta reforça o quanto a audiodescrição vai muito além da simples tradução de imagens em palavras. Trata-se de uma prática que amplia o direito à informação, à cultura e à participação plena no ambiente digital. Tornar a internet verdadeiramente acessível passa por reconhecer a potência da descrição como ponte entre diferentes formas de perceber o mundo.
*Natália Alcantara é coordenadora de comunicação na Espiral Interativa e participa da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos.