Inclusão para sentir e viver


Foto de torcedor surdocego que assiste a um jogo de futebol com auxilio de dois intérpretes de Libras tátil. Eles estão em uma sala com TV ao fundo que exibe uma partida da Copa.
O torcedor surdocego Carlinhos (ao centro) assiste a jogo do Brasil na Copa do Mundo 2022 com auxílio da Libras tátil. | Foto: Jornal SPTV 2, Rede Globo

Por Ana Galante*

Em um campinho de futebol feito com feltro e cola em relevo, um guia-intérprete leva a mão de um torcedor próxima do gol feito em plástico e gesticula o chute de uma bola. Nas costas do torcedor outro guia-intérprete sinaliza o número da camisa do jogador que fez o gol.

Um dos guias entrega o tambor para o torcedor bater, enquanto o outro profissional bate no campinho provocando uma vibração na mesa. O vídeo foi publicado na internet e contribuiu para divulgar a comunicação das pessoas com surdocegueira, e seu direito ao lazer.

O tato, portanto, é o principal ponto de apoio para comunicação da pessoa surdocega. A alfabetização em Braille para esse grupo torna-se fundamental para a formação educacional o posterior capacitação em tecnologia. Isso porque a Linha Braille apresenta pinos que abaixam e levantam para a leitura do Braille e teclado de digitação adaptado a esse sistema.

Esta tecnologia assistiva é o recurso que permite a pessoa com surdocegueira fazer uso de celulares e computadores com independência. A leitura dos conteúdos de sites e aplicativos ocorre via leitores de tela instalados, como o Jaws ou o NVDA. Ou nativos como o Talk Back (sistema Android) e o Voice Over (sistema IOS) em celulares. E a transcrição para texto em Braille acontece através da Linha Braille. Com 21 teclas, o aparelho permite o controle autônomo das funções.

Assim, quando as plataformas oferecem apenas opções visuais ou auditivas de verificação de segurança (chamadas “captchas”), levanta-se uma barreira de acessibilidade para esse grupo. Vale destacar que para as 40 mil pessoas estimadas no Brasil com surdocegueira a utilização da linha Braille ainda é uma realidade desafiadora, devido aos custos de aquisição.

Técnicas de Comunicação: acesso ao significado

Elaine Gomes Vilela, contribui para educar sobre o tema na tese de doutorado “A Comunicação háptica social e suas vias de construção: narrativas e experiências de guias-intérpretes e pessoas com surdocegueira em processos formativos”. O termo “háptico” refere-se à sensação do toque, que vem pelo tato.

Definição geralmente utilizada para recursos tecnológicos que produzem vibração tátil, ou à função sinestésica referente a procedimentos médicos e testes de simuladores.

Elaine detalha que o sistema háptico diz respeito ao sentido cutâneo, que pelo contato sinestésico ajuda nessa percepção. Ela relata que a expressividade do guia-intérprete e os movimentos da pessoa com surdocegueira ao se expressar foram os pontos de partida para sua curiosidade e posteriormente para seus estudos acadêmicos.

A principal função de se “desenhar” nas costas da pessoa é complementar informações: “a Libras tátil é utilizada por um guia- intérprete na mão da pessoa com surdocegueira o outro guia-intérprete complementa a informação nas costas”; resume a pesquisadora.

Essa forma de comunicar também permite antecipar situações, avisando a pessoa sobre eventos ou pessoas que se aproximam, assim como descrever emoções e outros elementos não verbais.

Também serve para dar ênfase a uma mensagem, como ocorreu na descrição dos jogos da Copa e mapear espaços e objetos, ajudando na prevenção de acidentes, autonomia e resgate da memória visual.

Vale ressaltar, que a pessoa deve ser o foco do “atendimento e utilização dessa comunicação, por isso, precisa estar de acordo e se sentir confortável em utilizar a comunicação.”, explica Elaine. A pessoa decidirá, portanto, sobre o toque recebido.

Um dos depoimentos da tese vem de uma intérprete de Libras, chamada Merivani:

“Antes do curso, tive contato apenas com uma surdocega interpretando os cultos para ela na igreja, com a Libras tátil apenas. (…)O curso me mostrou um outro lado, que eu não conhecia, me emocionou bastante, mostrou principalmente as dificuldades do surdocegos. Esse curso abriu muito a minha mente, para buscar novas possibilidades e tentar ser mais útil, essa experiência me alegrou.”

Cristina, aluna do curso, “estratégia da guia-interpretação”, conduzido pela pesquisadora, relata:

“A respeito do material didático, para mim surdocega, tive muita dificuldade porque a maioria dos materiais eram vídeos, também havia artigos com textos, sinceramente inadequados no formato para surdocego.

Acredito que para cegos também. A respeito de alguns destaques, frases e palavras estarem escritos em caixa alta, que dificulta muito o nosso entendimento, porque usamos aplicativo de leitor de tela. Acaba sendo muito difícil para nós, porque os leitores de tela, soletra as palavras escritas em caixa alta; mas, no contexto do curso, eu consegui alcançar o entendimento do conteúdo.”

Além da comunicação háptica, outra técnica bastante conhecida é chamada de “Tadoma”. Baseia-se na percepção da língua oral emitida: “Geralmente, posiciona-se o polegar suavemente sobre os lábios e os outros dedos se mantém sobre a bochecha, a mandíbula e a garganta do interlocutor.”

Cláudia Sofia possui habilidade de utilizar o Tadoma. Ela informa que nem todas as pessoas com surdocegueira se adaptam a essa modalidade. Por exemplo, com o esposo que também é surdocego, Cláudia se comunica através da Libras tátil (onde o alfabeto em libras é feito nas mãos da pessoa), e informa que ele prefere este meio para conversar com pessoas ouvintes.

Outras técnicas de comunicação são:

  • Escrita cursiva na palma das mãos (o dedo faz o papel de um lápis) utilizando a forma maiúscula, letra a letra.
  • Braille tátil (pontos em Braille adaptados e reproduzidos nos dedos das mãos da pessoa).
  • Placa alfabética em relevo (para quem possui resíduo visual).
  • Placa alfabética em Braille.
  • Fala oral amplificada próxima aos tímpanos da pessoa.
  • Libras em campo reduzida para quem possui resquícios de visão.
  • A comunicação social háptica nas pernas e nos braços, para comunicar emoções.

Além de modelo fotográfico e palestrante, Cláudia também é presidente da ABRASP (Associação Brasileira de Surdos e Cegos), vice-presidente do Centro de Reabilitação do Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego. Ela comenta que se tornar representante dos direitos das pessoas surdocegas e seus familiares e ainda encontrar um esposo foram novas perspectivas que a vida lhe trouxe. E o apoio da mãe deu-lhe a base para a independência.

Assim como as instituições em que Cláudia trabalha buscam oferecer capacitação profissional através de oficinas de panificação, também a Associação Educacional para Deficiências Múltiplas (AHIMSA), na cidade de São Paulo ajuda a fazer florescer vocações. Oficinas de costura, mosaico, arte em papel, leitura e escrita, comunicação, culinária e as atividades esportivas estão entre as opções disponíveis.

A instituição existe há mais de trintas anos e possui como principal desafio disponibilizar mais profissionais especializados na profissão de guia-intérprete. As habilidades requeridas para essa função diferem das ensinadas a um tradutor/intérprete de Libras e exigem cursos de especialização.

Protagonismo em Libras e em Braille

“Eu quero ser protagonista da minha história, quero que o surdocego seja protagonista da sua história.”, afirma Yuri Mendes, professor de Libras formado pela Universidade de Brasília. Ele cursa mestrado em educação para ensinar português para pessoas surdocegas e, como primeiro estudante, enfrenta o desafio de encontrar material convertido para leitura em Braille.

Haben Guirma primeira pessoa surdacega a se formar na Harvard Law School em 2013, possui uma cadela guia, é hábil na digitação da linha Braille para pedir comida por aplicativos e gosta de dançar salsa. Mas, existe algo que a aborrece: “Muitas pessoas com deficiência estão cansadas da palavra ‘inspirador’. Alguns até se ofendem”, disse Haben. “O uso excessivo embotou seu significado.”

Convidada pelo TED Talk e para outros eventos públicos registrados na internet, ela menciona a barreira atitudinal. Por exemplo: Quando a cantina da faculdade não queria lhe informar o cardápio via e-mail e a obrigava e descobrir somente ao comer o que havia de refeição.

A linha Braille que Haben utiliza nos Estados Unidos ainda possui um preço pouco acessível a maior parte da população brasileira. Isentar impostos para aumentar as oportunidades de aquisição de tecnologias assistivas é política apartidária e necessária.

Ainda sobre tecnologias assistivas, Taciana Ramos Luz, apresenta o dispositivo “Caeski”, em sua tese de doutorado intitulada “Caeski: uma tecnologia assistiva para a comunicação de pessoas com surdocegueira.”

Buscando adaptar luvas de comunicação que pudessem acionar um teclado e o joystick, a pesquisadora desenvolveu mais de nove protótipos até chegar num modelo que fosse ergonômico e ao mesmo tempo seguro quanto às vibrações enviadas para as mãos. Ao final do estudo, Taciana chegou a confeccionar uma plataforma de material rígido com sensores para se colocar as pontas dos dedos e um botão semelhante ao de espaço no teclado do computador.

Esse dispositivo se comunica com um aplicativo para celular, nomeado “Caeski”. O aplicativo possibilita a conversa via chat. Para que a pessoa com surdocegueira possa solicitar a instalação do aplicativo por terceiros, foi confeccionado um cartão, impresso em alto relevo em impressora 3D, com fundo preto e letras amarelas em alto contraste. Assim, o cartão pode ser lido pelo tato por uma pessoa cega ou surdocega e, também, por uma pessoa com baixa visão, argumentou a pesquisadora.

O texto do cartão é: “Olá, sou uma pessoa surdocega. Para falar comigo, baixe um aplicativo chamado Caeski em seu smartphone. Então, toque no meu ombro e lhe enviarei a primeira mensagem. Assim, poderemos nos falar como se estivéssemos no Whatsapp.” Do tamanho de um cartão de crédito à pessoa pode levar na carteira ou bolsa e se comunicar pela primeira vez com alguém.

Taciana, explica que a transmissão de dados entre um dispositivo Caeski para as mãos e o aplicativo Caeski são via Bluetooth. Por outro lado, as transmissões entre os aplicativos Caeski são via internet.

Foto do dispositivo Caeski com base plástica na cor preta e dez botões amarelos em forma das pontas dos dedos. Há dois botões extras (um do lado direito e outro do lado esquerdo). Flechas mostram a comunicação do dispositivo via bluethooth com um celular e entre dois celulares via internet.
Dispositivo Caeski e o caminho de como a comunicação flui entre o dispositivo e celulares conectados à Internet. | Foto: Tese de Doutorado de Taciana Ramos Luz

O dispositivo físico e o aplicativo foram planejados para facilitar a comunicação entre uma pessoa com surdocegueira e outra sem surdocegueira; que não conheça a libras tátil.

Tela inicial do aplicativo Caeski com foto dos contatos, nomes, data e horário da última mensagem enviada, para o usuário não surdocego. Layout semelhante ao do Whatsapp, com três pontinhos na parte superior do menu.
Tela inicial do aplicativo Caeski se parece com a do WhatsApp. | Foto: Tese de Doutorado de Taciana Ramos Luz

O estudo de usabilidade envolveu 16 pessoas voluntárias que receberam treinamento para aprender os códigos numéricos e as letras equivalentes do dispositivo para as mãos. Através de um game, desenvolvido durante a pesquisa, foi possível verificar o aprendizado das frases.

Ao colocar os dedos sobre a base do dispositivo é possível identificar que “a resposta de acerto e erro ocorre na forma de vibrações. Todo o dispositivo vibra uma vez em caso de acerto e duas vezes em caso de erro, indicando que a realização do exercício deve ser repetida.”

Duas Telas do aplicativo Caeski com fotos dos contatos. Ao lado de cada contato há um botão redondo com sinal de soma na cor verde. Na parte superior do menu, existe uma barra de pesquisa para digitar um novo nome. Flecha de retorno para a tela anterior na parte superior do menu, como no aplicativo whatsapp.
Duas telas diferentes do aplicativo Caeski mostram como os contatos ficam organizados.

A pesquisadora concluiu que “as interfaces desenvolvidas se adequam às medidas antropométricas de adultos”. Porém para crianças, existe a necessidade de se desenvolver outra versão do dispositivo para as mãos.

E que para uma comunicação imediata o uso do Caeski se mostra viável. Porém, “para leitura e compreensão de textos longos, a recepção excessiva de vibrações poderá ser confusa”, registra Taciana. Ela indica associar o uso do aplicativo a outras tecnologias assistivas, como a Máquina Perkins, também a Linha Braille, para receber um maior volume de informações.

Cabe salientar que a pessoa surdocega deve se dispor a aprender “um código específico que permita o uso do aplicativo”. Dezesseis participantes iniciaram o treinamento elaborado para a pesquisa. Dos onze que concluíram, “dez relataram que usariam Caeski e que este é um dispositivo muito importante para o dia a dia da pessoa com surdocegueira.” O retorno dos usuários demonstra o quanto a pesquisa acadêmica pode trazer qualidade de vida e acesso a direitos básicos.

Elaine Gomes Vilela localizou apenas 12 teses sobre a surdocegueira no Brasil no período de 2008 a 2020. Ela enfatiza que esta condição é “pouquíssimo pesquisada em comparação a outras áreas de inclusão”.

“Usei um senso semelhante de pioneirismo, de abrir caminho na jornada da vida para encontrar soluções e fazer as coisas funcionarem.” Assim, a advogada Haben Guirma, resume sua trajetória. Que traz a essência do que pessoas surdocegas vivem. Após anos dançando com amigos, alguém lhe disse em libras tátil que estava sorrindo. Algo inédito ela pode sentir, para além das traduções.

*Ana Galante é especialista em acessibilidade digital, analista de qualidade (QA) e uma das voluntárias do Movimento Web para Todos. Ela se descreve assim: “meu nome é Ana e gosto de gente. Antes catava latinhas. Com apoio da Educafro, hoje cato conhecimentos. Trazer equidade a produtos e serviços digitais é o que me motiva. E, para além da profissão, espero aplainar os caminhos para todas as pessoas, onde estiver.”


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