A importância da acessibilidade digital para a construção de uma educação mais inclusiva


Foto de seis crianças numa sala de aula padrão. Elas estão enfileiradas e sentadas em suas carteiras. Algumas escrevem em seus cadernos, outras folheiam livros e outras manuseiam tablets e computadores.

Neste mês, em que se comemora o Dia da Educação (28 de abril), o Movimento Web para Todos realizou uma roda de conversa especial com Liliane Garcez, psicóloga, administradora pública e mestre em Educação. 

Lili, como costuma ser chamada, desenvolveu projetos internacionais para Unesco, Organização dos Estados Ibero-americanos pela Educação, Ciência e Cultura e para o Unicef. Ela acaba de retornar ao Ministério da Educação assumindo a coordenação geral de estruturação do sistema educacional inclusivo, ligado à Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão.

O bate-papo aconteceu durante a 13a reunião bimestral da Liga Voluntária, programa de voluntariado do WPT com mais de 100 pessoas atuantes. Durante a conversa, mediada por nossa idealizadora, Simone Freire, foram abordadas situações reais de barreiras e desafios enfrentados por profissionais da educação nas escolas.

Acompanhe parte dessa incrível troca e aproveite para refletir sobre como é possível contribuir para a construção de uma educação escolar culturalmente mais desafiante e socialmente mais justa e equitativa.

WPT: Como resolver a realidade de escolas que não têm recursos financeiros para investir nem em tecnologias assistivas quanto em treinamento de docentes para lidar com alunos e alunas com deficiências severas, incluindo as que demandam, por exemplo, computadores e mouses adaptados?

Liliane Garcez: Quando a gente fala de tecnologia assistiva, não estamos falando de um determinado lugar para se usá-las. Essas tecnologias são produtos, recursos, metodologias, estratégias ou serviços, que têm como objetivo promover e ampliar a funcionalidade, sempre relacionada à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida para ampliar sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. 

Diferentemente de alguns outros recursos que a gente pode ter na escola, a tecnologia assistiva é um dispositivo pensado para uma pessoa específica. Por exemplo: quando a gente pensa numa cadeira de rodas, um objeto que a gente pode chamar de tecnologia assistiva, ela será diferente para mim e para outras pessoas. Embora seja utilizada na escola, ela é útil em diversos outros ambientes: numa igreja, numa praça, no supermercado, etc. Onde essa pessoa for, para que se possa garantir sua participação e ampliar sua mobilidade, a cadeira se faz necessária.

Quando a gente pensa em tecnologias assistivas de baixo custo, pensamos nas possibilidades que temos para realizar na própria escola, mas algumas tecnologias assistivas precisam da parceria com a Saúde. Para isso, as cidades têm Secretarias de Direitos das Pessoas com Deficiência. que fazem a articulação, porque para uma tecnologia assistiva ser de fato prescrita para determinada pessoa, é preciso entender quais são as situações e os impedimentos dessa pessoa, e mobilizar para que se criem dispositivos para que essa funcionalidade seja ampliada.

Supondo que a escola tivesse a possibilidade de organizar à disposição de um mouse adaptado ou de um acionador, como a gente chama. Esse acionador não é para ficar só na escola – ele é para a casa da pessoa, também, afinal, a tecnologia é para a pessoa. Quando a gente tem uma ferramenta ou um instrumento de apoio que seja pedagógico e escolar, esse é um dispositivo que fica na escola. Mas a tecnologia assistiva, especificamente, é para a pessoa – portanto, ela também tem que acompanhar essa pessoa em todos os outros lugares. Não adianta termos um acionador numa escola e ele não ser levado à sala de aula. Também não adianta ter uma pessoa estudante com um acionador na escola e não ter esse dispositivo em casa, afinal, como vai realizar as tarefas e atividades?

Mas, então, quem paga? Porque, se não é um material escolar, a escola não pode pagar. Por isso, falamos que para atender qualquer pessoa na integralidade dos seus direitos, precisamos de uma rede. Não basta só escola, tem que ter saúde e assistência envolvidas nessa mobilização, porque acessibilidade é direito. É preciso disponibilizar muitos meios e modos, pois quanto mais a gente restringe algo, mais a gente cai nas armadilhas da corponormatividade – como se só um corpo tivesse o direito de existir e de participar.

WPT: Jogos educativos online são cada vez mais comuns como recursos de aprendizagem. Muitos são gratuitos e garantem boa diversão a estudantes enquanto fixam novos conhecimentos. No entanto, geralmente possuem diversas animações, sons e elementos em movimento, o que pode causar estresse e ansiedade em pessoas neuroatípicas (além de não serem, em sua maioria, acessíveis para leitores de tela). Qual seria a melhor solução neste caso para não excluir ninguém, considerando que essa ferramenta é muito eficaz no ensino para a maioria da turma?

Liliane: Numa turma, não pode haver conforto se alguém está de fora, senão ela não é uma turma. Isso não é bom para nenhuma pessoa – nem para quem está dentro, nem para quem está de fora.

Essa é uma questão de instigar a pessoa educadora sempre a, ao planejar, pensar em metodologias ou instrumentos que envolvam todas as pessoas e engajem em todas as crianças.

Eu vou deixar toda uma turma sem acesso a esses jogos por conta de uma pessoa? Não, mas vocês concordam que, aqui, existem muitos corpos muito diversos e a gente está acessibilizando para que todo mundo possa participar em igualdade de condições. 

Professores ainda utilizam muito pouco as relações entre estudantes. Se a gente consegue engajar boa parte da turma e uma parcela fica de fora, o que a gente precisa fazer quando a gente educa? Oferecer mais meios. Inclusão é substituir um “ou” por um “e”.

Nós, enquanto sociedade, ao tentar nos deslocar dessa ideia de “média”, conseguimos também nos deslocar da ideia de que tem um corpo que, “na média”, consegue fazer as coisas; e que essa sociedade, “na média”, oferta uma boa educação para todo mundo.

A Declaração de Incheon, que foi feita em 2015, reforça que nenhum resultado educacional pode ser considerado exitoso se alguém ficar de fora. Senão, a gente estaria muito bem no Brasil, porque estamos com 95% de matrículas na Educação Básica e isso é muito maravilhoso. Mas e se você fosse um dos 5%? 

Escapar da média é muito interessante, e o que temos feito é instigar profissionais da educação a planejar pensando em todo mundo, para não fazer “puxadinho”. Ou seja: não tenho que pensar em todos os corpos do universo, eu tenho que pensar naquelas crianças que estão na minha frente. Eu tenho tantas pessoas na minha frente e eu tenho que planejar de acordo com aquelas pessoas para evitar os “puxadinhos”. É o que a gente chama de “desenho universal para aprendizagem”. 

Uma das questões mais interessantes que a gente tem no desenho universal é que ele traz para dentro da sala de aula reflexões de como melhorar essa educação. 

Não pensamos mais em como fazer para ajudar tal pessoa a participar. Isso é uma perspectiva assistencialista e de integração. Eu não vou ajudar alguém a fazer algo – eu tenho que transformar a atividade em questão em algo acessível, para que todo mundo possa participar, porque isso qualifica o ato. Existe intérprete de Libras nos shows, por exemplo, não para ajudar as pessoas que fazem uso das Libras – é para que o show seja melhor e mais acessível.

O jogo não fica divertido quando tenho um colega que está de fora. Nesse cenário, posso fazer várias coisas. Por exemplo, ensinar as crianças a fazerem descrição e, pensando além, incentivar e apoiar que se empoderem e se unam contra a falta de acessibilidade. 

Se não formarmos as crianças de hoje para essa cidadania, estaremos falando a mesma coisa daqui a 10 anos. É necessário engajar as crianças em acessibilizar o que está posto para nós. Não temos uma sociedade perfeita, temos uma sociedade machista, sexista, capacitista, racista. Podemos disponibilizar informações e falar que a acessibilidade é um direito. 

Quando a gente mostra para a turma que ninguém pode ficar de fora, que aquela pessoa não é “café com leite” e que não é engraçado ficar lá apenas observando, além de que isso não é bom para ninguém, estamos tentando formar pessoas anticapacitistas e tentando fazer uma geração saber que todo mundo tem o direito a participar. Estamos mostrando na prática que essa barreira atitudinal é a primeira barreira e que produz tantas outras.

WPT: Como garantir equidade para que estudantes com deficiência visual consigam usufruir de recursos digitais assistivos, como computadores e tablets com leitores de telas, na sala de aula para fazer lições e compartilhar trabalhos em PPTs, por exemplo?

Liliane: Quando a gente pensa em equidade, o nosso grande desafio é pensar que ela, de uma forma geral (e não é diferente com a inclusão escolar), tem que ser do geral para o específico. Se eu começo com as questões gerais eu consigo compreender quais são as ações específicas que tenho que fazer em determinados casos, sem fazer “puxadinho”. 

As pessoas com deficiência foram muito tardiamente englobadas na ideia de que elas também têm direitos humanos. Se a gente pensar que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é de 2006 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948, a gente vê o tanto de tempo que tem entre uma coisa e a outra. Não é fácil o movimento das pessoas com deficiência se mobilizar e envolver a sociedade para entender que elas também fazem parte dessa ideia de direitos humanos. O propósito daquela convenção é, justamente, dar conta de que a pessoa com deficiência tenha os mesmos direitos que todas as pessoas, propondo equidade de condições.

Temos o cuidado de não cometer os mesmos erros e um dos dos equívocos que ainda cometemos é, às vezes, pensar na especificidade antes do geral. Quando a gente pensa dessa forma, quase que imaginamos que todas as pessoas cegas têm as mesmas necessidades, que todas as pessoas surdas têm as mesmas necessidades, que todas as pessoas com autismo têm as mesmas necessidades e por aí vai.

A grande mudança que a gente tem é que começa do geral para o específico, e aí, à medida que as barreiras vão aparecendo, vamos mobilizando estratégias e recursos para eliminá-las – porque eliminar barreiras é melhor para todo mundo.

Não dá para se pensar em “equidade para estudantes com deficiência visual”. É preciso pensar em equidade para a Alice, por exemplo, que tem deficiência visual. É preciso passar a pessoa na frente da deficiência, caso contrário, acharemos que, se a escola ofertar Braille, ela estará sendo acessível para todas as pessoas cegas. Mas acessibilidade não é a mesma coisa para todo mundo e para nenhuma pessoa. Não se pode generalizar a partir da deficiência, senão caímos nas armadilhas do capacitismo tentando fazer o melhor.

Pensando nessa demanda do PPT, hoje em dia, quando você vai salvar o arquivo, tem um alerta acerca da acessibilidade do documento. Se ninguém tivesse brigado por isso, não o teríamos. A demanda só foi atendida por conta do aumento de pessoas usuárias e da necessidade disso acontecer. 

Temos que pensar em diversificar meios e modos, que é o que traz o desenho universal. Não podemos cair na esparrela de que só há um jeito de aprender e não há um jeito só de ensinar. Essa diversidade no diálogo nos enriquece, não nos atrapalha. Essa é uma batalha que a gente vem travando, não só para as pessoas com deficiência. Existe uma ideia de que determinado tipo de humanidade tem mais valor do que outros tipos de humanidade. 

Imediatamente, a professora e a turma têm que se engajar para que ninguém fique de fora. Assim, o PPT não sendo acessível, é necessário procurar outras fontes. Existem podcasts e vários outros mecanismos de acessibilizar o conhecimento.

Tudo é uma co-responsabilidade. Todas as pessoas devem seguir exigindo conjuntamente. Eu gosto muito de trabalhar com a ideia de aposta. Se você não aposta, você reduz a possibilidade daquela pessoa de te dar respostas potentes. Se eu acho que você não vai fazer, eu imediatamente já aposto menos em você e, por apostar menos, a tendência, de fato, é de você não fazer.

O vídeo do Movimento Mundial das Pessoas com Síndrome de Down desse ano me tocou muito, porque era exatamente do jeito que acho que as coisas acontecem. Quando a gente olha para uma pessoa com deficiência e pensa que ela não será capaz, você imediatamente já a infantiliza, acha que ela não vai entender e não vai conseguir.

A autonomia está em fazer as suas próprias escolhas. E, para tudo isso, a gente precisa estar junto. Ninguém vive sozinho.


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