
Por Evelyn Onofre*
Quando se fala em Língua Brasileira de Sinais (Libras), muita gente imagina que existe uma única forma de sinalizar igual para todo o país. Mas a realidade é outra. Assim como o português falado muda em cada região, a Libras também apresenta variações regionais, como se fossem “sotaques visuais”, digamos assim.
No Rio de Janeiro, por exemplo, algumas palavras, como “sala” e “alho”, são sinalizadas soletrando cada letra, enquanto em outras regiões o sinal é completamente diferente. Essa diversidade existe porque a Libras é cultural e local, e não universal.
De forma tímida, infelizmente, temos visto a presença de intérpretes de Libras em eventos, em alguns telejornais, vídeos institucionais e em campanhas pontuais de marcas.
E quando observamos o mundo digital, é ainda mais raro encontrar conteúdo traduzido em língua de sinais, seja por intérprete humano ou baseado em inteligência artificial.
Apesar de ser um idioma brasileiro, muita gente não conhece a Libras, seu alcance, suas possibilidades de aplicação e importância na vida de quem se comunica prioritariamente por meio dela.
Neste texto, vamos explorar o universo dessa língua a partir da experiência de Paloma Bueno, intérprete de Libras especializada em audiovisual e eventos, integrante da Liga Voluntária do Movimento Web Para Todos.
A experiência de Paloma Bueno com a Libras
Foi em uma reunião da Liga que conhecemos mais curiosidades sobre esse universo com Paloma Bueno, intérprete de Libras com mais de 12 anos de experiência profissional e 18 anos de contato com a comunidade surda.
Paloma é filiada à Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (ABRATES), Associação Profissional de Intérprete de Conferência (APIC) e Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA). Ela atua nos telejornais da TV Cultura e já passou por Band, GloboNews, LBV e TVs Legislativas.
Durante o bate-papo, ela explicou conceitos importantes, corrigiu termos comuns e trouxe reflexões que ajudam qualquer pessoa a compreender melhor a comunidade surda e a importância da acessibilidade digital.
Língua de sinais, não “linguagem” de sinais
Um dos primeiros pontos que Paloma fez questão de esclarecer é a diferença entre língua e linguagem. “Linguagem é algo mais amplo, que abrange qualquer forma de comunicação — a linguagem do cinema, de placas de trânsito, da publicidade. Já uma língua tem estrutura própria, com gramática, sintaxe, fonologia, morfologia e concordância. A Libras tem todas essas características, mas na modalidade visual motora.”, afirma ela.
Na Libras, a produção da mensagem acontece por meio de movimentos das mãos, expressões faciais e corporais; a recepção se dá pela visão. É por isso que ela é chamada de língua visoespacial ou gestovisual.
E, sim, “falar língua de sinais” é uma expressão correta, já que o verbo “falar” se refere à comunicação, independentemente da modalidade.
Terminologias e identidades surdas
O vocabulário também importa. Hoje, o termo “pessoa Surda” (com S maiúsculo, como defende a comunidade surda) é amplamente usado por representar identidade e pertencimento cultural.
Outros conceitos importantes:
- Pessoa que sinaliza e pessoa que oraliza: a primeira se comunica principalmente pela língua de sinais, a segunda utiliza a fala oral como principal forma de comunicação.
- Pessoa Surda sinalizante (ou “surdo puro”, usado na comunidade surda): não utiliza nenhum recurso oralizante.
- Pessoa com deficiência auditiva: termo abrangente, que pode incluir diferentes níveis e formas de percepção sonora.
Há várias identidades surdas, que combinam de formas distintas o uso da língua de sinais, da fala e de outros recursos de comunicação. No Brasil, há registros de dezenas de línguas de sinais indígenas, estudadas por pesquisadoras como Shirley Vilhalva, referência no estudo da Língua Indígena de Sinais (LIS).
Para aprofundar nessa temática, Paloma Bueno indica as obras “A Surdez. Um Olhar Sobre as Diferenças”, de Carlos Skliar, e “As Imagens do Outro Sobre a Cultura Surda”, de Karin Strobel. E há também a “Cartilha das Línguas Indígenas de Sinais”, organizada pelo Ministério dos Povos Indígenas do Governo Federal.
Libras e legendas são complementares, não concorrentes
Outro equívoco comum é achar que Libras substitui legendas ou que uma é melhor do que a outra. Paloma Bueno lembra que cada recurso atende necessidades diferentes. Ambos são igualmente importantes para garantir a acessibilidade.
A Libras é a primeira língua de muitas pessoas surdas no Brasil, enquanto a legenda pode ser essencial para quem não domina Libras, para pessoas com deficiência auditiva adquirida ou para diferentes contextos de consumo de conteúdo.
Tradução simultânea e atenção dividida
Interpretar em eventos ao vivo exige decisões instantâneas. Paloma Bueno explica que, quando alguém palestrando fala rápido, a prioridade é manter o sentido da mensagem, mesmo que alguns detalhes sejam resumidos.
E quando uma pessoa surda do público interage durante a apresentação? A resposta depende do tamanho do evento e do número de pessoas surdas presentes.
Se houver apenas uma pessoa, é possível abrir um parêntese para explicar um termo e retomar o conteúdo. Isso exige atenção redobrada, porque o intérprete precisa ouvir a continuidade da fala e processar as informações ao mesmo tempo.
Mas, em contextos maiores, a prioridade é manter a tradução do evento para o grupo, retomando a conversa individual depois.
O que cada pessoa pode fazer para apoiar o trabalho de intérpretes
Para facilitar a tradução simultânea, Paloma Bueno sugere que palestrantes e quem estiver fazendo a apresentação ou mediação do evento:
- Falem em ritmo constante.
- Façam pausas estratégicas.
- Evitem mudanças bruscas de assunto.
- Disponibilizem materiais e slides antes do evento.
Essas atitudes ajudam a manter a comunicação clara e inclusiva para todas as pessoas.
Inclusão começa com conhecimento
A conversa com Paloma Bueno mostra que entender a Libras é também compreender a cultura, as identidades e as formas de comunicação da comunidade surda. Não se trata apenas de um recurso técnico, mas de respeito e de valorização da diversidade.
Mais do que um recurso de tradução, a Libras é uma língua completa, com gramática própria, variações regionais e uma cultura rica que merece ser reconhecida e respeitada.
É sobre perceber a acessibilidade como um compromisso coletivo. “Cada detalhe conta para que a comunicação seja realmente para todas as pessoas”, resume Paloma.
Promover a comunicação para todo mundo envolve conhecer terminologias corretas, valorizar diferentes identidades surdas, entender que Libras e legendas são complementares e criar ambientes inclusivos em eventos e conteúdos.
Cada ajuste de postura, cuidado no preparo e decisão de incluir profissionais com qualificação reconhecida contribui para uma sociedade mais justa e participativa. No fim, acessibilidade é sobre garantir que ninguém fique de fora da conversa. E isso começa quando aprendemos e agimos para incluir.
*Evelyn Onofre é jornalista e integrante da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos.