É possível tornar um site acessível de forma automatizada?

Soluções “milagrosas” prometem eliminar definitivamente todas as barreiras de navegação de sites de forma rápida, prática e com baixo custo. Mas será que cumprem o prometido?


Foto de um semáforo de trânsito com a luz vermelha acesa. Ao fundo, há um céu azul.
Um alerta para as ferramentas que prometem eliminar as barreiras de navegação de sites de forma automática, rápida, prática e com baixo custo.

O tema “acessibilidade digital” tem ganhado cada vez mais espaço na mídia, mas ainda é bastante desconhecido pela maioria das pessoas e empresas. Esse cenário de relativo desconhecimento (principalmente técnico) tem, entre outras situações, favorecido a propagação de soluções “milagrosas” que prometem eliminar de uma vez só todas as barreiras de navegação de sites de forma automática, definitiva, rápida, prática e com baixo custo.

Mas a realidade é que essa promessa é praticamente impossível de ser cumprida. Isso porque tornar um site acessível (e mantê-lo) vai muito além de instalar uma única solução que garante eliminar todas as barreiras de navegação para todos os tipos de deficiência. O espectro das deficiências é muito amplo (auditiva, visual, motora, intelectual, cognitiva e múltipla!), o que inviabiliza o desenvolvimento de uma única solução que atenda, ao mesmo tempo, todas as necessidades de cada indivíduo com deficiência durante a navegação em sites e aplicativos.

Existem, na verdade, ferramentas e plugins específicos (e instalados separadamente) para permitir o acesso a esses ambientes pelas pessoas com as mais variadas deficiências – contraste automático, zoom de tela, avatar de Libras, conversão automática de textos em áudio, descrição automática de imagens, e tantas outras. Essas ferramentas, mesmo que isoladamente, contribuem, em parte, para reduzir algumas das barreiras encontradas nas páginas sem acessibilidade. 

No entanto, especialistas do mundo inteiro reforçam que, considerando a variedade das deficiências somando-se à complexidade de se automatizar processos que ainda demandam intervenção humana (como a descrição de imagens), não existe atualmente uma solução que garanta a entrega, em apenas uma instalação, de um ambiente web sem barreiras, preparado para ser navegado por qualquer pessoa, independentemente da deficiência que ela possa ter.

Esse tipo de ferramenta – vendida geralmente como “a solução única que irá resolver todos os seus problemas de acessibilidade” – nas plataformas digitais pode mascarar, inclusive, vários aspectos importantes da cultura de uma empresa. Além disso, seu uso poderá comprometer o desempenho geral de seu site, abrir brechas de segurança para ataques externos e ainda o manter sob risco de punição da lei (pois o fato de ter um plug-in “acessível” não significa que seu site está adequado para a navegação de uma pessoa, por exemplo, que navega pelos olhos ou pela boca). 

Convidamos três grandes especialistas brasileiros em acessibilidade digital para nos ajudar a entender como essas ferramentas automáticas atuam nos sites, suas vantagens e desvantagens e se seu uso poderia ser recomendado em algum estágio de seu projeto. 

Uma delas é a Talita Pagani, consultora de acessibilidade digital na Utilizza e mestre em Ciência da Computação. Ela lançou recentemente o livro Gaia: Um Guia De Recomendações Sobre Design Digital Inclusivo Para Pessoas Com Autismo e contribui constantemente com informações para o site do Movimento Web para Todos.

Participou também dessa entrevista Marcelo Sales, designer que atua há quase 20 anos em produtos digitais, atualmente mais focado em UX (experiência do usuário) e acessibilidade. Marcelo simplificou a WCAG 2.1, que reúne as principais diretrizes internacionais de acessibilidade digital, e criou um guia para consulta rápida e prática. No Instagram, ele tem explicado com mais detalhes cada uma dessas diretrizes.

A terceira especialista convidada é a Luciana Oliveira, tester e desenvolvedora na Sondery, consultoria de acessibilidade com foco em consumo. Luciana fez uma pesquisa intitulada “Por que os cegos não compram no seu e-commerce” e a apresentou na trilha principal do TDC2019 – The Developers Conference. 

1) Até que ponto é possível tornar um site acessível de forma totalmente automatizada?

Talita: Poucos componentes de acessibilidade podem ser automatizados. Quando se fala em acessibilidade, é comum pensar em navegação via teclado e acesso por leitores de tela. Isso é só a ponta de um iceberg.

Acessibilidade envolve produção de conteúdo compreensível – de textos a rótulos de campos de formulários -, descrição apropriada de imagens, legendas e audiodescrição para vídeos, estruturação adequada das informações, títulos de páginas, facilidade para encontrar informações e vários outros aspectos.

Algumas ferramentas podem apoiar na construção de alguns destes itens, mas elas não substituem o trabalho humano e não corrigem falhas de um site que foi produzido sem levar em conta princípios básicos de acessibilidade.

Alguns exemplos: o Microsoft PowerPoint usa um mecanismo de inteligência artificial para produzir o texto alternativo nas imagens inseridas nos slides. Porém, raramente o texto descreve bem a imagem. Ele pode descrever os objetos, por exemplo, “pessoa usando computador”, mas não descreve como é essa pessoa, qual a expressão facial, se usa o computador em uma mesa de trabalho ou em casa. É preciso que uma pessoa faça a descrição apropriada. 

Vejamos agora sobre um ponto crítico de acessibilidade: instruções de preenchimento em um formulário e mensagens de erro. Uma ferramenta automática não resolve o problema de um formulário projetado com campos sem rótulo, falta de feedback ou mensagens de erro confusas.

Marcelo: Não creio que seja possível deixar um site completamente acessível sem intervenção manual. Pelo menos, não com qualidade. Qualquer ferramenta com o propósito de automatizar tarefas facilita de um lado, mas prejudica de outro. Se voltarmos ao passado e pensarmos em ferramentas que prometiam escrever o código de um site conforme as intervenções visuais eram realizadas (o conceito antigo WYSIWYG “What You See Is What You Get”) lembraremos o quanto isso agilizava o processo enquanto, ao mesmo tempo, tornava o seu código “sujo”. Ganhava-se agilidade e perdia-se performance e qualidade. Tecnicamente é possível construir um algoritmo que insira um código (alt=””) em uma imagem, mas o que vai dentro das aspas – e que está diretamente relacionado a uma boa experiência -, ferramenta nenhuma irá se equiparar a uma intervenção humana.

Luciana: Do ponto de vista de engenharia e qualidade de software, eu não conheço nada parecido disponível no mercado. Você deve estar se perguntando: mas as ferramentas de automatização de testes não fazem este papel? Temos que considerar códigos legados, mais práticas e, principalmente, semântica. Infelizmente, vários sites e aplicativos ainda não estão utilizando, por exemplo, o HTML 5, que abrange uma gama de possibilidades para aplicação da acessibilidade.

2) Quais as vantagens e desvantagens das ferramentas que “prometem” tornar um site acessível de forma totalmente automatizada?

Talita: Na minha experiência, não consegui encontrar vantagens. Estas ferramentas automáticas tratam acessibilidade a “nível cosmético” e como se ela fosse uma funcionalidade. Muitas delas, que são instaladas como plugins nos sites, não corrigem falhas de acessibilidade como imagens sem texto alternativo, vídeos sem legendas, conteúdo que não está acessível via teclado, textos de difícil compreensão, marcação HTML incorreta, marcação de cabeçalhos de forma incorreta, entre outros. Se o site tem uma estrutura inacessível, como a pessoa irá acessar o site e habilitar o recurso?

Além disso, muitas destas ferramentas causam grande impacto no tempo de carregamento de um site. Em um teste que realizei, uma destas ferramentas gerou uma perda de 30% de desempenho. Isso faz com que o site leve mais tempo para carregar e, se a pessoa usar rede 3G ou 4G, irá consumir mais dados.

Tempo de carregamento e consumo de dados também são fatores de acessibilidade, pois podem criar barreiras para pessoas que usam dispositivos móveis mais limitados ou acessam o conteúdo via 3G/4G. Vale ressaltar também que muitas destas ferramentas entram em conflito com leitores de tela.

Marcelo: A única vantagem que eu vejo é que elas podem provocar uma discussão sobre o tema em uma empresa. Na maioria dos casos, o tema é inserido em uma empresa por meio do compliance, as pessoas percebem (ou alguém comenta) que aplicar acessibilidade está relacionado ao cumprimento da legislação e, caso a empresa não cumpra os critérios, sofrerá sanções. E a abordagem da maioria dessas empresas se pauta nessa questão.

Tive uma experiência semelhante com duas empresas fornecedoras desse tipo de tecnologia e, em ambos os casos, entre os diversos argumentos criados para defender seu uso, a abordagem evidenciou os possíveis problemas com a legislação. Outra questão relevante é que essas empresas aproveitam o desconhecimento geral a respeito da acessibilidade e, com isso, enxergam um terreno fértil para a inclusão desse tipo de recurso. Ao fazer uso de ferramentas assim, a empresa estará apenas mascarando um problema que deveria ser resolvido na raiz, o que consequentemente dificulta a inserção de uma cultura de acessibilidade entre os membros de diferentes áreas. Ou seja, algo que já é complicado de se conquistar se tornará ainda mais difícil ao se usar uma “muleta” para resolver um “problema” que é ocasionado, na verdade, pelas próprias pessoas envolvidas no desenvolvimento de projetos. 

É sabido que o maior problema da acessibilidade é o desconhecimento de padrões de código e não a acessibilidade em si. Por fim, se o objetivo da empresa for apenas “o compliance”, independentemente da ferramenta ou da técnica utilizada, não há como garantir o cumprimento da legislação a contento, sempre haverá brechas interpretativas. 

Em um relatório da empresa norte americana Level Access, de 2019, a respeito de compliance e como funciona os processos nos Estados Unidos (baseado na lei americana Section 508) – mas cujas argumentações são perfeitamente aplicáveis no Brasil -, é possível entender que a abordagem inicial em um processo é através de uma validação técnica com o uso de ferramentas.

Caso o processo continue, passa-se a valer a experiência (user experience – UX) de fato das pessoas com diferentes tipos de deficiência e, daí, há margens para diferentes tipos de argumentação, prevalecendo, inclusive, o nível de conhecimento do tema pelas pessoas envolvidas no processo.

Luciana: Até o momento, não encontrei nenhuma vantagem nessas ferramentas. Todas que já testei promovem uma péssima experiência, como arrobas de Javascript que provocam lentidão e atraso no retorno de voz dos leitores de tela, não interagem com os comandos de teclado muito usados por pessoas cegas.

Afinal, são estes atalhos que oferecem uma navegação ágil e produtiva. Essas ferramentas automáticas também não rotulam os botões e demais campos, algo muito recorrente em sites e aplicativos. Ao listar  os 10 apps que mais acesso, todos têm componentes sem rótulo. E, outra vez, o leitor de telas fica perdido, pois não pode informar ao usuário qual ação ele precisa executar. 

Outra questão são os manuais e  orientações de uso destas ferramentas. Não há uma informação clara e concisa, ou seja, qual é o tipo de acessibilidade que ela oferece?

O termo acessibilidade abarca milhares de opções e isto funciona em contextos que fazem sentido para o usuário. Então, voltamos ao princípio da interação (“humano-computador”).

Quando o sistema não é compreendido e utilizado pelo usuário com plena autonomia, ele não cumpriu sua função.

3) Sabemos que a adequação de um site segundo as diretrizes de acessibilidade digital é um processo que pode demorar alguns meses para ser concluído. Vocês acham que essas ferramentas podem ser úteis de alguma forma até que o novo site esteja pronto? Por quê?

Talita: Acredito que estas ferramentas podem causar mais transtornos do que benefícios devido aos problemas que comentei, ou seja, a experiência que já estava prejudicada pode ficar pior. Se um site de e-commerce não possui descrições de imagem dos produtos, adicionar a ferramenta só irá deixar o site mais lento e não resolverá esse problema. Se um site possui textos de difícil compreensão, a ferramenta não irá resolver o problema.

Se a estrutura do site (código HTML) necessita estar minimamente organizada para o plugin funcionar da maneira esperada – isto é, as tags estarem sendo devidamente utilizadas para que o conteúdo seja lido pelo plugin corretamente – é provável que o site já se encontre minimamente acessível. Logo, não é menos custoso treinar as equipes de desenvolvimento e mais enriquecedor em termos de conhecimento e tempo para que o site seja desenvolvido da melhor maneira possível?

Importante destacar que a acessibilidade deve estar presente em todas as fases de um projeto desde o início. Não existe o momento de pensar em acessibilidade. Ela faz parte da definição de conteúdo, marketing, desenvolvimento, design, atendimento ao cliente. Geralmente, a adequação às diretrizes pode levar meses por ser uma ação corretiva.

Nesse sentido, recomendo que sejam feitas melhorias incrementais, por exemplo: uma entrega com melhoria nos títulos, outra entrega focada no processo checkout e assim por diante. Esse processo contínuo traz mais resultados e é melhor para analisar o impacto das adequações realizadas.

Marcelo: Novamente caímos no ponto da cultura de acessibilidade. Ao fazer uso desse tipo de ferramenta, mesmo que provisoriamente, estaremos criando um precedente perigoso para que a equipe não priorize a aplicação adequada do que precisa ser feito simplesmente por “já ter uma solução no site”.

A empresa precisa se perguntar por que ela está fazendo acessibilidade. Ela tem pressa para cumprir a legislação? Ou ela quer entregar uma experiência agradável, performática e interoperável de verdade? Hoje em dia, as pessoas podem acessar o conteúdo de um site por meio de diferentes formas.

O foco precisa ser em oferecer a melhor opção para que este conteúdo seja acessado em qualquer dispositivo e local. Essas ferramentas exigem a instalação de um plugin que por si só é oneroso para o usuário, além de não levar em consideração que essa pessoa poderia estar consumindo este conteúdo em um local diferente que um desktop (computador de mesa).

Muitos outros pontos são satisfeitos com a adoção de boas práticas no desenvolvimento de sites e aplicativos, como SEO e Performance. Isso sem contar na capacitação dos membros da equipe em desenvolver projetos promovendo um ganho de médio e longo prazo no conhecimento de todos. Algo que nenhuma ferramenta promoverá.

Enfim, acessibilidade não é a aplicação de uma ferramenta, mas a garantia de qualidade de um produto. E isso só irá acontecer com a mudança de mentalidade das empresas e das pessoas envolvidas. No meu ponto de vista, nenhuma ferramenta desse tipo deveria ser utilizada por nenhuma empresa, independentemente de seu tamanho. O fato de que não há um único especialista em acessibilidade no mundo que indique ferramentas nesse sentido, indica muita coisa a respeito.

Luciana: Entendo que a proposta destas ferramentas não contempla o processo de desenvolvimento de software. Ao contrário, tira da esteira de produção a análise e os testes com os usuários, que é algo extremamente necessário para identificar erros, propor melhorias, novas funcionalidades etc.

Essas ferramentas vêm na contramão da qualidade do desenvolvimento ao dar uma falsa sensação de otimização do processo. Soluções “mágicas” não vão elevar o patamar de qualidade do código escrito pelo seu time. Diversos indicadores mostram que ofertamos excelente serviços quando temos de forma efetiva times ricos em diversidade. Antes de serem desenvolvedores, eles também são um possível usuário do seu sistema.  

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