Um time de especialistas em acessibilidade digital se reuniu durante uma live no YouTube mediada por Simone Freire, idealizadora do Movimento Web para Todos, para responder uma série de perguntas e dúvidas enviadas pelo público em geral.
Participaram do bate-papo Henri Fontana, gerente técnico de programas de acessibilidade do Google Estados Unidos, Odilon Gonçalves, líder de produtos digitais no Museu da Pessoa, e Leonardo Gleison, engenheiro de software e embaixador do Web para Todos.
Durante o encontro, que trouxe como tema “Como tornar a web um local muito mais inclusivo e acessível”, o grupo conversou sobre investimento das empresas em acessibilidade, ferramentas assistivas e seu uso, inteligência artificial, como as bibliotecas disponibilizam livros e materiais acessíveis e como as universidades têm oferecido cursos sobre o tema.
Muitas referências, iniciativas e vivências sempre trazem novas formas de entender o universo da acessibilidade. Mas a mensagem que sempre fica é que a “acessibilidade” não é uma coisa que você adiciona, não é um plugin, não é “um extra”. Ela tem que fazer parte do produto ou serviço desde sua concepção.
“Um produto que não tem acessibilidade é incompleto, assim como um carro sem porta ou sem os pneus. Temos que incorporar essa ideia: acessibilidade não é opção, ela é mandatória, ela faz parte de um produto completo”, destacou Henri Fontana durante a live.
Simone complementa afirmando que “todo mundo pode dar sua contribuição, seja fazendo uma descrição de imagem nas suas postagens, independentemente de vender ou não um produto, trabalhar nas cores adequadas, etc.” Ela afirma também que não é preciso, necessariamente, ser grande especialista para adotar acessibilidade digital no seu dia a dia, seja qual for sua área de atuação. Mas é importante estudar sobre as diretrizes de acessibilidade digital e ir aplicando esse conhecimento em tudo o que fizer no digital.
O encontro integrou parte das atividades de celebração do Dia Mundial de Conscientização sobre Acessibilidade (Global Accessibility Awareness Day – GAAD, em inglês). Neste ano, a data foi comemorada em 18 de maio.
Confira a seguir um compilado dos assuntos abordados
Mito ou verdade: custa caro aplicar acessibilidade nos produtos digitais?
A acessibilidade deve ser incorporada desde a fase da concepção e da descoberta do produto ou serviço. Se for aplicada e pensada desde o início, o custo não é tão alto quanto se imagina, pois integra o ciclo de desenvolvimento.
No entanto, se não há preocupação em aplicá-la desde o começo e desejar incorporá-la posteriormente, certamente o investimento não será o mesmo.
Outro ponto importante a ser observado é: mesmo pensando e aplicando os princípios da acessibilidade no início do projeto, pode acontecer, no pós lançamento, do produto ou serviço não ser 100% acessível. No entanto, é mais fácil ajustar um erro do que adaptar um site inteiro que não foi construído pensando em acessibilidade para torná-lo acessível.
Por que tratar acessibilidade se eu não sei se há pessoas com deficiência acessando o meu site, o meu serviço ou o meu produto?
A resposta direta e sucinta para essa pergunta seria: porque trata-se de uma Lei, a Lei Brasileira de Inclusão. No entanto, pensando em mercado, em que qualquer produto ou serviço não deve ser restrito a um só tipo de perfil consumidor, é preciso expandir o público que você vai oferecer para utilizar os recursos de acessibilidade para, consequentemente, expandir sua utilidade, demanda e atendimento ao cliente.
Afinal, a acessibilidade beneficia todas as pessoas. Outro ponto importante é destacar que as empresas ainda resistem a aceitar a importância da acessibilidade, pois não é clara a forma de extrair métricas da utilização dos recursos por pessoas com deficiência.
Considerando duas métricas fundamentais aplicadas no mercado, que são o custo de aquisição de clientes (CAC) e o lifetime value (LTV), torna-se possível calcular o investimento por cliente e o retorno que trará. Uma outra possibilidade utilizada, inclusive, pela equipe do Museu da Pessoa, é, por exemplo, medir o uso do tradutor automático de Libras por meio do número de traduções solicitadas em um determinado período.
A reflexão que fica é: talvez quem empreende não esteja recebendo a comunidade surda em sua loja justamente porque não tem intérprete para recebê-la. Então, será que realmente o público não consome ou é o local/serviço/site que não está preparado para receber as pessoas com deficiência?
Ferramentas assistivas: quem usa?
Quase todas as coisas que nós produzimos no mundo e para a humanidade como um todo são pra ser usadas por pessoas.
Imagine o seguinte cenário: você é uma pessoa sem deficiência e está em uma padaria, em um ambiente com circulação intensa de pessoas e com barulho. Na televisão, passa o jornal da manhã e está disponível o closed caption, recurso de legenda com identificação de todos os sons que teve sua utilidade bastante discutida.
Nessa situação temos o que chamamos de deficiência situacional, ou seja, você não pode ouvir, mas pode ler. Portanto, a ferramenta assistiva chamada closed caption está sendo utilizada para facilitar e melhorar ainda mais o dia de todas as pessoas. Muitas das soluções de acessibilidade, empregadas no mundo, ajudaram também pessoas que não têm deficiência.
O meu serviço ou produto precisa ficar “feio” pra ter acessibilidade?
Há um tempo, quando ainda existiam poucos recursos tecnológicos, pessoas desenvolvedoras elaboravam o layout dos sites fazendo uma organização em tabelas. E como não existiam muitos recursos para posicionar bem os elementos, os sites acabavam tendo um layout pouco atrativo visualmente.
Chegou até mesmo a existir o desenvolvimento separado de sites para pessoas com e sem deficiência, utilizando a argumentação da falta de visão das pessoas para deixar de focar os aspectos visuais, fazendo surgir o mito de que “sites acessíveis são visualmente feios”.
Com o surgimento do movimento “tableless” e a evolução tecnológica do CSS (mecanismo para adicionar estilos a uma página web), a organização e a estruturação de um site ficaram facilitadas. O aspecto visual pode, nos dias de hoje, ser trabalhado independentemente da parte de acessibilidade, no mesmo produto, na mesma página, no mesmo site.
De fato, para uma pessoa com deficiência visual severa, a cor da fonte usada, os elementos visuais, as fotos, podem não ser importantes. Porém, sim, é possível que todos esses aspectos sejam trabalhados independentemente da acessibilidade e com a devida descrição e textos alternativos.
O Google Material Design é uma biblioteca visual criada pelo Google para profissionais de desenvolvimento que desejam atender aos requisitos de acessibilidade. Em sua documentação, tanto do Material Design quanto das plataformas Android e web, o Google fornece informações importantes sobre desenvolvimento acessível de forma clara e de fácil entendimento.
Para obter mais informações sobre acessibilidade, é possível pesquisar por termos-chave como “Google acessibilidade“, onde você encontrará materiais concentrados sobre a temática, além da documentação do Android, Chrome e Material Design.
Como funciona a esteira de acessibilidade para as entregas do Google?
O processo de desenvolvimento de produtos do Google considera as necessidades e os requerimentos de acessibilidade desde o estágio inicial.
Profissionais de design, de engenharia de software e demais que tratam da interação, incorporam a acessibilidade nas especificações e implementação do produto. Por exemplo, o uso de etiquetas apropriadas para botões ou as descrições de imagens. Na fase seguinte, são feitos testes dos aspectos importantes e que são mandatórios antes do lançamento oficial.
De qualquer forma, como todo produto de tecnologia, não é possível garantir que sejam 100% acessíveis e podem existir algumas falhas e problemas de acessibilidade que não acontecem por falta de cuidado no desenvolvimento, mas porque todos os produtos são falíveis. Essas falhas são coletadas por meio de comentários de pessoas usuárias que são enviados para a engenharia e retomados para análise e correção.
Como o Google entende a inteligência artificial atuando com verificações de acessibilidade? A verificação automática é recomendada?
O time de engenharia do Google está realizando pesquisas e testes de verificação de acessibilidade usando inteligência artificial com o objetivo de automatizar parte desse processo ou complementar o trabalho de profissionais de teste. No entanto, é arriscado afirmar a eficácia dessa abordagem, uma vez que se trata de experiências humanas.
Explicando melhor, uma máquina nunca poderá compreender o sentimento de uma pessoa com deficiência visual, por exemplo, ao navegar em uma página. Ela não será capaz de entender a frustração de alguém ao não conseguir comprar um berço online porque a imagem não possui uma descrição adequada.
Em resumo, a tecnologia nunca poderá substituir completamente uma avaliação feita por pessoas. Portanto, a utilização da inteligência artificial na verificação de acessibilidade é algo que requer muitos anos de estudo e pesquisa.
Quando os recursos para validar a acessibilidade de um produto ou site são escassos ou a empresa não possui uma equipe de QA (Quality Assurance ou Garantia de Qualidade), é possível recorrer a validadores automáticos, como o Access Monitor, ou utilizar as funcionalidades oferecidas pelo W3C para auxiliar na varredura e fazer uma lista de verificação.
O que ainda falta para que o tema de acessibilidade passe a ser tratado com a devida atenção nas grades dos cursos de nível superior?
Essa falta de incorporação de técnicas de acessibilidade, sobretudo em cursos com formação em Design ou Ciências da Computação, é um problema global e acaba sendo também uma das barreiras para o desenvolvimento adequado de acessibilidade digital entre estudantes.
As pessoas não conhecem o tema, não têm ideia ou formação técnica. Então, terão que investir um tempo para aprender. De certa forma, isso afasta profissionais do caminho correto da implementação, da incorporação da acessibilidade digital nos produtos.
É importante que essa mentalidade mude, e que esse aspecto da inclusão e da acessibilidade seja pensado desde a formação básica de profissionais, seja da área de design ou de qualquer setor da economia.
Em contrapartida, a equipe do Movimento Web para Todos tem acompanhado uma evolução nesse sentido, um aumento de interesse por parte das instituições de ensino, de escolas de Marketing Digital. Porém, diante de todo o cenário de exclusão na web brasileira, isso ainda é muito incipiente.
Vale também ressaltar que escolas e universidades, em formações básicas, são importantes pontos de partida para que qualquer profissional possa seguir, posteriormente, na consulta de recursos on-line, documentações e para aprender detalhes técnicos de acessibilidade. Mas profissionais só vão atrás dessa informação se souberem exatamente o que procurar. E é esse o papel da escola.
A complexidade do assunto vai no âmbito de que a educação precisa evoluir porque é impossível uma pessoa com deficiência ter oportunidades iguais de emprego e de vida, se não for tratada com equidade dentro de plataformas de educação.
Outra reflexão importante sobre o tema durante o encontro foi: “Por que as faculdades não têm acessibilidade na grade curricular? Porque estudantes não estão buscando. E por que não estão buscando? Porque as empresas ainda não colocaram essa prioridade. E por que ainda não é prioridade? Porque o público ainda não reivindicou essa necessidade!”
Ainda sobre a jornada acadêmica e a acessibilidade, como têm sido o entendimento e a aplicação das ferramentas da acessibilidade nos produtos e serviços digitais de bibliotecas universitárias?
A plataforma DSpace, um repositório online amplamente utilizado em bibliotecas, e o Moodle, uma plataforma de ensino virtual com ênfase na web semântica, são exemplos de ferramentas que visam promover a acessibilidade. Ambas oferecem recursos e diretrizes para garantir a inclusão de pessoas com deficiência. No entanto, recentemente, observou-se um cenário preocupante.
Ao interagir com um grupo de profissionais de desenvolvimento com especialidade em DSpace, foi constatado que grande parte possuía lacunas significativas no conhecimento sobre acessibilidade e melhores práticas. Mesmo com o potencial de acessibilidade oferecido pelas plataformas, a falta de entendimento e expertise de profissionais responsáveis por configurar e criar os produtos acabou comprometendo a efetividade dessas soluções.
Embora haja iniciativas promissoras, como a notável biblioteca virtual desenvolvida pela Universidade Federal de Alagoas para pessoas com deficiência visual, o desafio persiste. Como ressaltou Leonardo Gleison, especialista no assunto, a questão central continua sendo o fator humano.
É fundamental que profissionais atuantes no desenvolvimento, design e criação de conteúdo na web assumam a responsabilidade de se empoderar com conhecimentos relacionados à acessibilidade.
A transformação do cenário ainda problemático da acessibilidade web no Brasil dependerá do comprometimento dessas pessoas que, por meio de seus esforços, poderão fazer a diferença e promover uma mudança significativa em prol da inclusão digital.
As empresas têm mudado a postura com relação à acessibilidade digital?
A percepção do Movimento Web Para Todos é de que as empresas aumentaram a procura nos últimos dois anos, inclusive, para participação em oficinas, consultorias, diagnósticos e rodas de conversa com pessoas com deficiência que são embaixadoras do movimento.
Especialmente as empresas B2C (Business to Consumer), que são as empresas que fazem negócio direto e que atendem o público consumidor final, pois é possível recorrer ao Código de Defesa do Consumidor, inclusive, para cobrar que a acessibilidade exista. No entanto, nem sempre as pessoas com deficiência estão conscientes de seus direitos e de que estão sendo lesadas.
É suficiente cumprir o nível AA da WCAG em termos de acessibilidade?
Essa é uma pergunta que está em discussão entre especialistas que trabalham na proposta de regulamentação do artigo 63 da Lei Brasileira de Inclusão e nas normas da ABNT. Há um debate sobre se devemos considerar a conformidade até o nível AA como suficiente.
Especialistas argumentam que alcançar os três níveis de acessibilidade (A, AA e AAA) é extremamente desafiador, especialmente considerando que apenas 1% dos sites no Brasil possui o mínimo de acessibilidade. Portanto, a recomendação em debate é se devemos nos concentrar em cumprir os dois primeiros níveis (A e AA).
Esses parâmetros de WCAG – de A, AA ou AAA – seguem uma linha para traçar limites. No entanto, é importante que exista, ao colocar a acessibilidade no projeto, um pacote de boas práticas: um pouco de A, um pouco de AA e um pouco de AAA para se atingir o que é importante ao público.
Nos Estados Unidos, uma aplicação ou website é considerado acessível quando ele cumpre os requisitos do nível AA. E mesmo nas próprias definições do WCAG, o AAA seria o padrão mais acessível de todos, porém ele impõe muitas restrições na criação de aplicativos. E não é essa a intenção. A intenção é que a acessibilidade seja parte do produto, mas não o fim em si, e AA atende a essa especificação.
É importante que a abordagem do nível seja cuidadosa e analítica. E, do ponto de vista da pessoa usuária, os parâmetros são fatores considerados para questões legais, se atendem ou não. Mas o que importa mesmo é essa pessoa ter acesso às ferramentas e informações do produto ou serviço.
Na experiência de uma pessoa com deficiência, se tiver o acesso àquelas informações, produto ou serviço, já está adequado, independentemente se é AA ou AAA.
O que se encontra, mais comumente, são profissionais com foco em validação automática, em fechar um diagnóstico nota 10 e pensar: “Fechei o checklist, tá ótimo, amanhã não tenho que me preocupar mais com acessibilidade”.
Mas a realidade não é essa, pois acessibilidade é uma coisa viva. A partir do momento em que se coloca um conteúdo sem acessibilidade, sem se preocupar com a audiodescrição, sem se preocupar com a forma correta de escrever para que uma pessoa neurodivergente também consiga compreender o seu produto ou serviço, “vai tudo por água abaixo”, ou seja, todo esforço empenhado no processo terá sido em vão.
*Participaram da transcrição da live e da edição desse conteúdo as seguintes pessoas integrantes da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos: Edivaldo Ferreira, Fernanda Carramate, Jeniffer Deus, Odenilton Júnior Santos e Rafaela Ometto.