Como fazer seu processo seletivo digital ser mais inclusivo para pessoas neuroatípicas


Foto de uma mulher em um escritório sentada de frente para um notebook, onde há outra mulher projetada na tela. As duas usam fones de ouvido e parecem estar em uma videochamada.

Texto escrito por Ghael Henrique Leite e Evelin Laureane Sousa Gusmão*

Apesar de ser um direito social básico, encontrar um bom trabalho não é uma tarefa fácil. Mesmo com todas as qualificações, a aprovação em um processo seletivo depende de tantos fatores que pode acabar sendo uma missão muito desafiadora. E quando falamos sobre pessoas neuroatípicas a situação fica ainda mais complicada. 

O mercado atualmente fala muito sobre diversidade e inclusão nas organizações, mas a maioria das empresas ainda não sabe como fazer um processo seletivo acessível e inclusivo para pessoas autistas, TDAH e Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD). 

Em uma rápida pesquisa no LinkedIn — até para oportunidades exclusivas para pessoas com deficiência — podemos ver descrições de vagas confusas e formulários cheios de perguntas abstratas que impedem pessoas neuroatípicas de compreenderem o seu conteúdo. 

Pensando nisso, decidimos trazer um guia de como as empresas podem usar a acessibilidade digital para serem mais inclusivas em seus processos de recrutamento e seleção. 

Dica básica: promova a equidade em todas as etapas

Antes de entrarmos no guia propriamente dito, precisamos esclarecer um ponto muito importante: “A acessibilidade digital não se limita à construção de interfaces acessíveis.” 

Quando falamos sobre acessibilidade digital aplicada ao setor de Recrutamento e Seleção, estamos falando sobre a criação de ambientes inclusivos em cada fase do processo seletivo. Por isso, o comportamento interpessoal no digital precisa ser considerado, desde a fase de concepção da vaga até a definição da rotina diária de trabalho. 

Para pessoas autistas, por exemplo, essa acessibilidade garante uma competição justa com oportunidades iguais, reconhecimento e valorização de suas habilidades únicas, e a participação em ambiente de trabalho onde se sintam verdadeiramente acolhidas.

Agora que já aprendemos isso, vamos focar nas próximas fases.

Descrição da Vaga: comunique-se com clareza!

Ao redigir a descrição de uma vaga, use uma linguagem clara e direta. Evite frases longas e complexas que podem confundir as pessoas candidatas. Por exemplo, ao invés de escrever um texto dizendo “Procuramos por alguém com muita proatividade e dinamismo, capaz de pensar fora da caixa”, você pode escrever: “Estamos em busca de uma pessoa proativa e criativa”.

Tente pular uma linha para definir espaços claros entre a mudança de tópicos, pois isso vai facilitar o processo de leitura, seja visual ou com a utilização de leitores de tela. E lembre-se que prestar atenção a esses detalhes vai garantir a acessibilidade de vários grupos sociais, inclusive quando há interseção entre eles. Uma pessoa cega e neuroatípica é um exemplo disso. 

Além disso, também devemos garantir que a descrição do cargo e das funções seja eficiente. Por isso, se possível, descreva as tarefas, os requisitos e as competências necessárias para a execução das atividades. Fazer isso, ajudará quem se candidata à vaga  compreender o que a empresa espera dessa pessoa. 

Processo de seleção: seja flexível e use o bom senso

Candidatar-se para uma vaga já é um processo estressante. Pensar nas palavras-chave corretas para que um robô não te elimine, ficar aguardando uma resposta, imaginar como será a entrevista… Tudo isso gera muita ansiedade! 

Por isso, quando você for criar um formulário de candidatura, foque apenas no que é essencial para avaliar a compatibilidade da pessoa que está se candidatando à vaga. Evite perguntas abstratas, formulários muito longos, porque isso pode gerar uma sobrecarga e, consequentemente, uma crise na pessoa neuroatípica.

E aqui vai um ponto de atenção: cuidado com os formulários prontos e reaproveitados!

Durante a pesquisa para a criação deste artigo, nos deparamos com uma vaga para designer UX remoto que, na extensa lista de documentos solicitados, exigia o número da carteira de motorista. Esgotamos as possibilidades pensando na necessidade desta informação, mas até o prazo da conclusão deste material, não conseguimos chegar a uma conclusão. 

Também devemos prestar atenção nas condições fornecidas para execução de testes e avaliações. É essencial que o prazo para a conclusão da atividade esteja alinhado com o que é pedido pela empresa e as necessidades de quem se candidata. Além disso, também é importante oferecer algum tipo de suporte para casos de dúvidas e dificuldades.

Outro ponto de atenção que devemos ter é quanto à solicitação de vídeos de apresentação. Muitas empresas hoje usam essa ferramenta para observar as habilidades de comunicação e a personalidade de quem se candidata. Mas, no caso de pessoas neuroatípicas, uma atividade assim pode ser um grande desafio. Isso porque, para a maioria das pessoas neurodivergentes, a ausência de alguém que faça a interlocução em tempo real gera impacto na sua maneira de se expressar porque ela tem um esforço extra de imaginar uma situação hipotética, o que é algo muito difícil ou até impossível para muitas delas. 

Em casos onde o vídeo de apresentação é extremamente necessário, recomendamos que a descrição da tarefa seja clara, trazendo o que é esperado pela empresa, perguntas que devem ser respondidas e as informações técnicas (minutagem mínima e máxima, formato da gravação, etc). 

Entrevista: ofereça previsibilidade e apoio

No momento da entrevista, seja virtual ou presencial, tente criar um ambiente acolhedor. Faça perguntas objetivas, curtas e sem usar figuras de linguagem. Talvez permitir que a pessoa traga uma apresentação de slides, um mapa mental ou uma lista com pontos importantes da sua carreira poderá facilitar o início da conversa. 

Considere também que muitas pessoas neuroatípicas podem enfrentar dificuldade para manter contato visual, iniciar ou encerrar respostas. Elas também podem utilizar algum objeto (pelúcias, colares, brinquedos ou pirulitos) como suporte sensorial. Prepare-se para acolher a pessoa e respeitar as suas diferenças.

Se for possível, prepare um texto fornecendo uma visão geral dos temas que vão ser abordados durante a entrevista. Isso vai gerar previsibilidade, reduzir a ansiedade da pessoa candidata e permitir que ela crie um roteiro mental para a conversa, algo essencial para a maioria das pessoas autistas. Uma forma de fazer isso é enviar um e-mail com uma agenda detalhada da entrevista, incluindo tópicos a serem discutidos, prazos e etapas do processo.

Também é muito importante que você leia o currículo da pessoa que se candidatou antes da entrevista, assim, você conseguirá fazer perguntas mais direcionadas às experiências dessa pessoa. Outro ponto que deve ser observado é o plano de fundo da câmera ou o ambiente que aparecerá na tela, isso porque, o excesso de informações pode confundir quem está participando do processo. 

Algumas organizações mais preocupadas com processos seletivos humanizados já começaram a se atentar que imprevistos acontecem. Por isso, ter um canal de comunicação acessível para avisar sobre possíveis atrasos pode fazer total diferença na preparação psicológica de quem se candidata à vaga.  

Pós-contratação: dicas para gerir pessoas neuroatípicas

A gestão de pessoas no ambiente de trabalho remoto requer flexibilidade e sensibilidade. Quando se trata de pessoas neuroatípicas, isso se torna ainda mais necessário. É importante reconhecer as habilidades únicas e aceitar sem preconceitos comportamentos que podem ser vistos como diferentes. 

Por exemplo, uma recrutadora pode se deparar com uma pessoa candidata que esteja durante toda a entrevista com um bichinho de pelúcia na mão, que lhe trará mais segurança e a deixará menos ansiosa. Esse tipo de atitude deve ser tratada com normalidade por quem recruta.  

Outro exemplo é que muitas pessoas neuroatípicas possuem dificuldades para olhar nos olhos, mesmo através de uma câmera. Por isso, pode ser que durante a entrevista, a pessoa passe um tempo desviando o olhar ou olhando para outro lado, mas isso não significa que ela não está atenta ou interessada. 

Preparar a equipe para a chegada dessa pessoa também é um fator determinante para a sua permanência no posto. Reuniões individuais frequentes e curtas para conversar sobre o seu desempenho e dar feedbacks sensíveis e diretos ao ponto também são atividades cruciais no pós-contratação. 

A criação de espaços de trabalho virtuais, onde integrantes da equipe possam compartilhar ideias e colaborar em projetos de forma acessível e inclusiva, também pode aumentar o senso de pertencimento da pessoa recém-contratada. Além disso, também é papel da gestão garantir um ambiente seguro e oferecer apoio e orientação (principalmente em situações de estresse). 

Por fim, criar um processo seletivo acessível para pessoas neuroatípicas é um compromisso com a empatia e a responsabilidade. Existem centenas de profissionais neuroatípicos altamente qualificados apenas esperando uma oportunidade de mostrar suas competências e habilidades. 

Por isso, quando consideramos as dicas fornecidas neste guia e tomamos as medidas necessárias para tornar os processos seletivos mais inclusivos, nos posicionamos como pessoas defensoras da inclusão e ajudamos a criar ambientes de trabalho remotos ou presenciais acolhedores para todo mundo

Como apoiar ativamente a inclusão de pessoas neuroatípicas no mercado de trabalho?

Em janeiro de 2024, foi lançada a primeira pesquisa nacional sobre o mercado de trabalho para profissionais neuroatípicos. 

A pesquisa tem como objetivo mapear as dificuldades, necessidades e comportamentos de pessoas neuroatípicas no âmbito profissional. Com isso, esperamos ter respostas sobre como criar um mercado de trabalho remoto ou presencial mais inclusivo para todo mundo.

Qualquer pessoa autista, TDAH, altas habilidades ou com outro tipo de neuroatipicidade pode participar deste estudo gratuitamente. Para isso, basta responder ao questionário até o final de março de 2024

*Ghael Henrique Leite é cientista social, especialista em Inclusão Social e Educacional Autista. É mestrando em Tecnologia e Sociedade, e fundador da CRIAutista, iniciativa que busca conscientizar empresas, desenvolver pesquisas acerca de população neuroatípica e prepará-las para o mercado de trabalho. Ghael é também um dos integrantes da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos.

Evelin Laureane Sousa Gusmão é publicitária, ilustradora, especialista em marketing estratégico, autista e hiperfocada em estudos do comportamento do consumidor há mais de 15 anos. É pós-graduanda em Comunicação, Diversidade e Inclusão nas Organizações, e hoje se dedica a desenvolver e apoiar iniciativas para a inclusão de pessoas neuroatípicas nas esferas sociais, pessoais e profissionais através da CRIAutista. Também é mentora de carreira para mulheres pretas e indígenas, pessoas neurodivergentes e jovens em situação de vulnerabilidade.


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