Editais culturais precisam garantir acessibilidade digital em todo processo


Foto de três crianças no palco durante apresentação de teatro. Elas estão fantasiadas e uma delas é cadeirante.

A cultura só é verdadeiramente pública quando todas as pessoas podem acessá-la, participar dela e se reconhecer em suas expressões. Esse ideal, no entanto, ainda enfrenta barreiras concretas, especialmente quando falamos de acessibilidade digital em políticas públicas. 

No caso dos editais culturais, que é o tema desta reportagem, isso se torna ainda mais delicado. Se o edital não é acessível, ele já começa excluindo. E, se os projetos financiados por ele também não forem, a exclusão se repete. “Por isso, sempre reforçamos que a acessibilidade digital deve ser pensada em todo processo, desde a fase de ideação até a ponta, no impacto que o produto ou serviço vai gerar na sociedade”, lembra Simone Freire, idealizadora do Movimento Web para Todos.

Nos últimos anos, o Brasil avançou em algumas frentes importantes nesse tema. A própria legislação passou a prever de forma mais clara a necessidade de garantir acessibilidade digital em ações culturais. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em vigor desde 2015, estabelece que sites e plataformas públicas estejam acessíveis a pessoas com deficiência. Em 2021, o Decreto nº 10.645 reforçou a obrigatoriedade de que órgãos da administração pública federal assegurem acessibilidade digital em seus portais e serviços online.

Mas o avanço mais evidente – e também mais recente – veio com a Lei Complementar nº 195/2022, a chamada Lei Paulo Gustavo. Ela trouxe a acessibilidade como um princípio transversal das ações culturais financiadas com recursos do Fundo Nacional de Cultura, determinando que editais e projetos contemplados adotem medidas concretas para inclusão. A Lei Aldir Blanc 2, também sancionada em 2022, segue na mesma direção.

Ainda assim, na prática, a realidade é que muitos editais continuam sendo publicados apenas em PDF sem estrutura acessível, em linguagem técnica ou rebuscada, e sem alternativas em Libras, audiodescrição ou formatos compatíveis com leitores de tela. 

Além disso, mesmo quando o edital é acessível, ele muitas vezes não exige que os projetos apresentados incluam medidas de acessibilidade, o que compromete toda a cadeia de participação. “O mundo ideal seria que os editais, além de serem acessíveis, estimulassem proponentes a fazerem o mesmo dando exemplos, oferecendo minicursos online ou guias para ensinar as pessoas como fazer uma proposta acessível. E, depois de contemplada, continuar a jornada e mostrar a elas como implementar a acessibilidade digital em seus projetos culturais”, sugere Simone.

Quando um edital não considera isso desde o início, e quando um projeto financiado com dinheiro público não planeja ações inclusivas, o resultado é a repetição das desigualdades de sempre.

Boas práticas de acessibilidade digital em editais culturais

Sob a perspectiva de quem elabora os editais, é possível adotar uma série de boas práticas, desde publicar documentos em formatos acessíveis, até prever canais de inscrição e atendimento que contemplem múltiplas formas de comunicação. 

Também é importante incluir a exigência de acessibilidade como critério de avaliação dos projetos inscritos ou ao menos como diretriz clara que deve ser considerada por proponentes. A própria elaboração do edital pode se beneficiar da escuta ativa de pessoas com deficiência ou de especialistas na área, ampliando o olhar e evitando soluções genéricas.

Mas a responsabilidade não é apenas de quem organiza o edital. Quem inscreve projetos culturais também precisa incluir acessibilidade em seu planejamento. Isso significa, por exemplo, prever intérpretes de Libras para apresentações presenciais ou online, incluir legendas e audiodescrição em vídeos, adaptar interfaces digitais para leitores de tela e garantir que materiais de divulgação sejam compreensíveis, com uso de linguagem simples e objetiva. 

Caso a equipe proponente não tenha conhecimento no tema, a recomendação é que busque apoio técnico com profissionais da área cultural que já aprenderam sobre isso ou com especialistas em acessibilidade digital, que colaborarão de forma mais ampla. 

O ideal é que todos os recursos de acessibilidade estejam previstos no orçamento e não como um acréscimo posterior ou uma “gentileza” voluntária, o que infelizmente acontece com frequência. É importante entender também que esses recursos de acessibilidade digital vão muito além da Libras ou das legendas. Toda a experiência no ambiente digital da pessoa que vai usufruir do projeto cultural precisa ser levada em consideração, desde a pesquisa inicial até a reserva do ingresso.

“Uma dica importantíssima que sempre damos é fazer orçamentos com bases reais, de acordo com o praticado no mercado. Parece algo básico, mas ainda nos deparamos com muitos valores bem abaixo do custo e isso prejudica demais a qualidade do produto ofertado ao público”, avisa Simone.

Algumas experiências no Brasil têm mostrado que é possível fazer diferente. Em estados como Ceará, Bahia e Distrito Federal, editais da Lei Paulo Gustavo exigiram medidas concretas de acessibilidade nos projetos contemplados, além de publicarem o documento em linguagem simples.

“A inclusão precisa deixar de ser percebida como um obstáculo técnico ou um custo extra e passar a ser compreendida como parte essencial do fazer cultural. Projetos mais acessíveis são também mais diversos, mais potentes e mais transformadores”, finaliza Simone.


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