Talita Pagani é mestre em quebrar barreiras para pessoas com deficiência cognitiva na web

Ela estuda acessibilidade digital desde os anos 2000 – época em que quase ninguém falava sobre isso. Sua paixão pelo aspecto social do uso das tecnologias e sua experiência pessoal impulsionaram sua trajetória na área




 

Foto da Talita Pagani, em pé, segurando um microfone. Ela tem cabelos lisos e longos e está usando óculos.
Talita Pagani durante evento BrazilJS. Foto: Reprodução vídeo Acessibilidade Web Cognitiva – BrazilJS Conf 2016.

Ao ter o seu primeiro contato com o computador, quando tinha 12 anos, Talita Pagani começou a se interessar pela área de tecnologia. Com 13 anos, já queria saber como os sites eram desenvolvidos e pensava nas possibilidades de poder compartilhar conhecimento por meio da rede. Hoje, com 31 anos, é bacharel e mestre em Ciência da Computação e engajada não apenas na acessibilidade da web em geral, mas faz um trabalho específico para a inclusão de pessoas com deficiências cognitivas, neuronais ou de aprendizagem.

Seu contato com o tema surgiu durante os anos 2000 ao estudar sobre a usabilidade da web. Como sempre se interessou pelos aspectos sociais do uso da tecnologia, foi impactada ao pensar pela primeira vez quais eram as limitações ou barreiras de acesso a pessoas com deficiências. A partir de 2009, passou a estudar mais a fundo e, durante seu mestrado, desenvolveu um guia de recomendações de acessibilidade para pessoas com autismo.

Outro aspecto que fez com que se tornasse militante da causa da acessibilidade é a sua própria experiência. Talita tem um leve grau de astigmatismo e miopia, além de misofonia e características da Síndrome de Asperger. Dependendo do site em que navega, para conseguir ler, precisa recorrer ao zoom para aumentar as letras. Já quando as fontes são muito finas ou cores com baixo contraste, como fonte cinza claro em um fundo branco, mesmo com óculos, sente incômodo e desconforto, dificultando a leitura. Páginas que têm conteúdos sonoros que tocam automaticamente, dependendo de como forem, já causaram, além de irritação, sensação de pânico. Por último, uma questão que afeta um pouco menos a sua experiência com a web, mas ainda assim é uma barreira, é o fato de ser canhota. Muitas vezes, ao utilizar seu smartphone, tem dificuldade em acessar controles específicos na tela justamente por utilizar a mão esquerda.

É sobre esse tema que ela conversou com o Movimento Web Para Todos. Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:

WPT – Como funciona o seu trabalho de acessibilidade na web para pessoas com autismo?
Talita – Esse trabalho começou no meu mestrado, mas não queria que ficasse restrito somente a isso. Durante o mestrado, eu desenvolvi um guia de recomendações de acessibilidade voltado às características de pessoas com Autismo, chamado GAIA (ele beneficia outros grupos de pessoas neuroatípicas também). Na época, eu não havia identificado que eu tinha características de Asperger.

Hoje, eu tenho procurado outras formas de expandir esse trabalho: escrever artigos conscientizando sobre o assunto, traduzir materiais, complementar as recomendações desenvolvidas e entender melhor como as pessoas com autismo usam a web e suas barreiras ao interagir com os recursos digitais. Ainda planejo fazer algum trabalho de design participativo junto a pessoas com autismo para ter uma compreensão mais ampla sobre o assunto. Para este ano, sairá um livro resultante da minha dissertação de mestrado como uma forma de difundir ainda mais o conhecimento sobre a acessibilidade para pessoas com autismo.

WPT – Você atua também com outros tipos de deficiência?
Talita – Antes do mestrado, minha compreensão de acessibilidade web era maior sobre deficiências visuais e um pouco sobre deficiência auditiva. Eu ainda trabalho com avaliações de conformidade de acessibilidade para esses públicos, mas cada vez mais tenho focado em deficiências cognitivas, neuronais ou de aprendizagem.

Além do autismo, estou começando a pesquisar sobre Dislexia e Discalculia. Desde o início do mestrado, eu já queria trabalhar com o tema de deficiências cognitivas de forma ampla. Porém, a diversidade de cada transtorno ou deficiência desse tipo exige uma atenção dedicada.

Embora haja pontos em comum nas barreiras que pessoas com autismo, dislexia e déficit de atenção enfrentam na web, as características dessas condições são bem diferentes e não é possível uma abordagem generalizada. Em curto prazo, pretendo abordar a questão da ansiedade também, pois transtornos mentais estão incluídos no tema de neurodiversidade que eu defendo. Meu foco de pesquisa atualmente está nas condições que não são visíveis e ainda estão cercadas de estigmas.

WPT – Você encontra barreiras ao utilizar a internet? Quais?
Talita – Eu tenho um leve grau de astigmatismo e miopia, além de misofonia, um tipo de hipersensibilidade a certos sons, e características de Síndrome de Asperger, embora não tenha diagnóstico formal ainda. Na parte visual, tenho incômodo e desconforto quando leio um texto com fontes pequenas (iguais ou menores que 12 pixels), fonte muito fina ou usando cores com baixo contraste, como fonte cinza claro em um fundo branco mesmo se eu estiver usando óculos. Recorro ao zoom do navegador frequentemente para ler determinados sites.

Na parte auditiva, determinados sons altos, agudos, sussurrados ou com chiados me causam muita irritação e pode chegar até à sensação de pânico em alguns casos. Quem convive comigo já presenciou alguns episódios e muitas pessoas não pensam nisso quando colocam um conteúdo sonoro tocando automaticamente. Isso também tem a ver com as características neuroatípicas. Nessa vertente, eu também tenho problema de sobrecarga cognitiva e falta de foco em sites que contêm muitas informações apresentadas na tela, como imagens, anúncios, animações, etc.

Outra questão menor que me afeta no uso de dispositivos móveis é o fato de ser canhota. A maioria dos sites móveis são projetados com um design que considera o uso do smartphone na mão direita e às vezes fazem com que eu não consiga acessar facilmente certos controles na tela se eu estiver segurando com a mão esquerda.

WPT – Na sua opinião, por que a internet precisa ser mais inclusiva e acessível? O que falta para as pessoas se engajarem nessa causa?
Talita – A internet precisa ser inclusiva porque ela é um ambiente para todas as pessoas. É como as ruas, em que todo mundo tem o direito de ir e vir. Na internet, todos têm o direito de acessar e consumir as informações que lá estão. Barreiras de acesso à internet e à web não representam somente uma dificuldade para usar a tecnologia, mas, sim, ferem o direito das pessoas enquanto cidadãs a ter acesso a informações, serviços e produtos.

Fazendo uma analogia com o mundo real, imagina se uma pessoa cadeirante for impedida de entrar em uma agência bancária e criar uma conta para si por conta de sua deficiência? Pessoas com deficiência trabalham, fazem compras, acessam sites de notícias, assistem vídeos, assinam serviços, pagam contas pela internet, pedem carros por aplicativo, usam computadores e smartphones para os mesmos serviços que as pessoas sem deficiência.

Creio que o principal ponto é a empatia: há muitas pessoas e empresas que acham que pessoas com deficiência ou limitações não são parte do seu público-alvo por terem uma visão estereotipada sobre esse público. Se tivermos mais pessoas com deficiência no mercado de tecnologia em diferentes funções e mais testes de usuário com esse público, teríamos muito mais sites e aplicações acessíveis.

WPT – O que representa fazer parte do Movimento Web Para Todos e qual a importância das ações realizadas pelo movimento?
Talita – Tem sido muito gratificante fazer parte do Movimento desde o início, pois percebo que há um grande esforço em sensibilizar principalmente as empresas sobre o tema de acessibilidade e mobilizar o mercado para ter maior conhecimento sobre o assunto.

Ajudar na realização dessas ações me motiva enquanto profissional e pesquisadora, sendo uma forma de contribuir com a sociedade. Um dos grandes diferenciais do Movimento é focar na educação: oferecer conteúdos no site, realizar minicursos, palestras, participar de debates. Essa ação de levar o conhecimento é fundamental para transformar o mercado.

As pesquisas que são conduzidas com voluntários, das quais eu já participei, também são muito importantes para termos dados e estatísticas quando as pessoas perguntarem sobre barreiras de acessibilidade em determinados nichos de mercado. Esses dados são informações preciosas para embasar decisões nas empresas e para serem usadas em trabalhos acadêmico-científicos.

WPT – Quais outras ações ou iniciativas podem ser realizadas para promover uma web mais acessível?
Talita – Creio que precisamos encorajar mais pessoas com deficiência a relatar para as empresas as dificuldades que elas passam para acessar o sites e aplicativos. Essas empresas precisam sentir que estão perdendo clientes e consumidores importantes ao negligenciarem a acessibilidade de seus produtos. Uma grande empresa de delivery de restaurantes teve uma mudança de mentalidade sobre o assunto depois de reclamações de clientes com deficiência que não conseguiam usar o serviço para pedir comida, pois ele não era acessível. Depois disso, passaram a conversar com essas pessoas, envolvê-las no processo de desenvolvimento e testar para garantir que a solução estava inclusiva.

A principal transformação é a de mentalidade, principalmente nos departamentos de gestão. Profissionais de desenvolvimento também podem contribuir fazendo palestras internas e difundindo o conhecimento que possuem sobre acessibilidade com demais colegas. Na experiência que eu já tive fazendo isso, traz muito resultado, porque realmente há pessoas que ainda desconhecem como alguns recursos na web podem representar uma barreira para determinados usuários.

Outro ponto que ajuda muito a promover este conhecimento é ter equipes mais diversificadas, com pessoas possuindo diferentes características, transtornos ou deficiências para que haja outros pontos de vista.

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Gostou do tema e quer aprender mais? Conheça alguns dos trabalhos realizados pela Talita Pagani:

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