“Libras é a minha língua! É por meio dela que existo”, diz professor surdo



Matheus e Karina estão abraçados em uma área externa em um dia ensolarado. Ambos sorriem. Ao fundo, há uma área verde.
Matheus e Karina abraçados. Foto: Arquivo pessoal.

Matheus Bueno Valle Machado é surdo e trabalha como professor de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ele é casado com Karina Zonzini, intérprete de Libras. Ambos sabem o que é lidar diariamente com essa língua que a sociedade precisa olhar, aprender e torná-la cada vez mais visível.

“​Somos quase 10 milhões de surdos no Brasil. Apesar da acessibilidade ser lei (está na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI), raros são os sites que têm essa preocupação com a acessibilidade. As empresas precisam de mais atenção com os surdos. Somos um público que também consome”, diz Matheus Bueno.

Karina se interessou pela profissão de intérprete há mais de oito anos quando estava trabalhando na Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. “Na época, trabalhava com videoconferências e seria oferecido um curso de Libras EaD aos professores do Estado. Eu me sentia incomodada em falar com os professores surdos e não saber me comunicar em Libras”, conta.

Hoje ela afirma que é apaixonada pela profissão. “Amo o que faço e quando interpreto algo e vejo que aquilo foi importante para alguém, não tem preço. A sensação de dever cumprido é o que me move.”

O casal conta que é preciso fazer muito ainda para tornar a web acessível, mas destaca que as empresas precisam se atentar também em colocar Libras na rotina. Na parte dos textos, um dos caminhos é dar preferência para palavras mais simples. Segundo Karina, essa prática facilita bastante a compreensão dos conteúdos para a comunidade surda.

Um pouco mais sobre Libras

Confira abaixo a entrevista que realizamos com Karina e Matheus para compartilhar um pouco da vivência deles com Libras. Eles falaram sobre desafios, mercado de trabalho, uso da web pela comunidade surda, entre outros destaques.

WPT – Como foi seu aprendizado de Libras? E sua alfabetização em português?
Matheus – Comecei a aprender Libras quando tinha seis anos de idade quando minha mãe me levou a uma escola que ensinava a língua. Apesar de sermos surdos, o uso da sinalização não era permitido. Tínhamos que priorizar a oralização. Eu tive dificuldades e perdas no aprendizado, principalmente na Língua Portuguesa. Resolvi estudar sozinho por meio de jornais, quadrinhos, figuras, etc.

WPT – A comunidade surda tem usado a web?
Matheus – A web é uma fonte inesgotável de informação para nós que somos surdos e para todo mundo. Porém, falta acessibilidade. Precisamos ter acesso ao conteúdo todo e não só a resumos. Agora usamos a rede para pesquisar e fazer compras e, sem esse acesso, navegar na web é muito difícil.

WPT – Como está o mercado para quem trabalha com Libras? Tem surgido mais trabalhos para a acessibilidade de conteúdos online?
Karina – O trabalho para um intérprete de Libras está muito competitivo, principalmente quando o contratante pensa só no quanto irá economizar. Tem surgido mais trabalho, mas a grande maioria ainda se preocupa na modalidade presencial. Porém, a educação, como faculdades de Ensino a Distância (EAD) têm cada vez mais requisitado esse tipo de acessibilidade, um grande ganho para a comunidade surda que também pode fazer os cursos online.

WPT – O que é preciso fazer para que mais empresas incluam esse recurso em sua comunicação?
Karina – Para que a comunicação aconteça nas empresas de forma natural, é preciso que elas comecem pela contratação de pessoas surdas (para diversas áreas). Além disso, é preciso que elas possibilitem que os funcionários tenham acesso a cursos de Libras para que sejam capazes de se comunicar efetivamente. Com a rotina, a troca será cada vez maior e melhor. Nesse caso, é um baixo investimento, pois trata-se apenas da acessibilidade atitudinal e comunicacional.

WPT – Qual é o maior obstáculo para que a internet tenha mais conteúdos acessíveis com Libras?
Karina – A falta de conscientização de criadores de sites, das pessoas que não estão engajadas realmente com acessibilidade e aquelas que acham que apenas uma cor diferente apenas resolve.

WPT – Qual é o primeiro passo para aprender Libras? Quais dicas você dá para quem quer começar a se comunicar por meio dessa língua?
Karina – O primeiro passo é procurar uma instituição idônea, saber quem será o professor, da mesma forma quando procuramos por um curso qualquer. No começo, Libras pode parecer difícil, mas, como outra língua, precisa de treino, principalmente por ser uma língua visual. Cuidado com os conteúdos gratuitos!

WPT – O Brasil é caracterizado por ter diferentes sotaques e expressões em cada região. Isso também acontece no universo de Libras? Quais são os desafios nesse sentido?
Karina – Sim e muito! Difere até mesmo de uma cidade para outra. Um exemplo que aconteceu comigo: interpretei um sinal em São Paulo e, em Sorocaba, interior de São Paulo, esse mesmo sinal ser outro. Por isso, quando sei que terei contato com surdos de outros lugares, gosto de avisar que sou de São Paulo e, caso faça um sinal diferente, peço que me ensinem o sinal do local. É uma forma também de adquirir mais vocabulário. Não podemos esquecer das gírias, surdos usam também, principalmente os mais jovens.

WPT – Qual é o maior desafio da interpretação em sites, transmissões ao vivo nas redes sociais, Ensino a Distância (EAD) etc?
Karina – A terminologia usada para assuntos específicos costuma ser um dos desafios. Isso acontece bastante quando estamos interpretando uma live ou mesmo um conteúdo ao vivo. Às vezes não recebemos o conteúdo com antecedência e isso é uma adversidade.

WPT – O que as empresas, organizações e comunicadores podem fazer no planejamento para facilitar o trabalho do intérprete e melhorar a compreensão dos surdos em relação aos conteúdos digitais?
Karina – As empresas e organizações devem fazer com que os intérpretes tenham acesso ao conteúdo antes de executar a interpretação. Isso porque, se tiver algum termo que não conhecem, eles têm tempo de pesquisar e consultar uma informação mais significativa para a comunidade surda.

WPT – O que você aprendeu em relação à comunidade surda e a parte de Libras que todo mundo precisa saber? 
Karina – O aprendizado é constante! Nós – ouvintes – usamos um vocabulário mais detalhado para dizer algo sobre uma pessoa, o surdo é mais direto. Nem sempre a metáfora usada por um ouvinte tem o mesmo significado para um surdo e vice-versa. São mundos diferentes, culturas diferentes. Eu aprendo e ensino todos os dias.

Outros pontos importantes para compartilhar: surdos sinalizados são aqueles que sinalizam e têm, como primeira língua, a Libras. E a Língua Portuguesa é sua segunda língua.

Já os surdos oralizados são aqueles capazes de realizar leitura labial para entender o que as outras pessoas estão dizendo. Eles também conseguem se expressar verbalmente; compreendem a Língua Portuguesa por terem bastante contato com ouvintes ou, ainda, são pessoas que se tornaram surdas por conta de algum acidente ou doença, depois de já terem sido alfabetizadas.

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