Compliance, acessibilidade digital e cidadania


Foto de um martelo de madeira utilizado por juízes e juízas em julgamentos sobre um teclado de notebook.

Artigo de Denise Guedes e César Eduardo Lavoura Romão*

A humanidade vivenciou grandes revoluções em razão da evolução tecnológica,  como o surgimento da máquina a vapor, da eletricidade e dos primeiros computadores. Porém, nem todas as pessoas conseguiram participar e aproveitar, em igualdade de condições, dos benefícios trazidos pelas tecnologias. Como veremos, a falta de acessibilidade implica em barreiras para a autonomia das pessoas com deficiência.

Atualmente, segundo Klaus Schwab, diretor e fundador do Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum, Davos, 2016), vivemos a Quarta Revolução Industrial e nela observamos, claramente, rápidas transformações na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos com pessoas, organizações e com o Estado, ou seja, como exercemos a cidadania.

A internet presente o tempo todo e em toda parte elimina, cada vez mais, os limites entre os mundos físico, digital e biológico na chamada Sociedade 4.0.  A intersecção entre esses mundos só é possível em razão da alta velocidade dos fluxos de dados que trafegam na web e geram informação, que por sua vez apoia a tomada de decisão, seja por grandes empresas ou por você, ao decidir com que roupa sairá de casa pela manhã após dar uma olhada na previsão do tempo. Boas-vindas à “Economia dos Dados”!

Outro aspecto do nosso tempo é a frequência com que nos deparamos com a palavra compliance, especialmente após a descoberta de crimes cometidos por meio de organizações públicas e privadas mediante conduta ilícita por parte de pessoas envolvidas em suas atividades. Originária do vocabulário inglês que significa conformidade, compliance refere-se à forma como uma organização lida com as leis e demais normas às quais se submetem e quais valores éticos leva em consideração para a tomada de decisões.

Em uma organização, a área de compliance zela pela cultura da ética e da integridade no relacionamento com todas as pessoas envolvidas em suas atividades como  investidores e investidoras, público interno, clientes, empresas fornecedoras de produtos ou serviços, etc. Ela se mantém em permanente evolução, sempre atenta aos riscos inerentes às atividades desenvolvidas e suas implicações, pensando constantemente nas formas de reduzi-los.

O que é “Inclusion Compliance”?

O Inclusion Compliance é o programa que assegura a inclusão, promove o aumento da diversidade dentro de uma organização e reduz as práticas de assédio e discriminação no ambiente de trabalho, potencializando os resultados e, ao mesmo tempo, contribuindo com a construção da integridade corporativa. Isso reflete diretamente na saúde organizacional, no desenvolvimento de ambiente seguro e inclusivo, nos indicadores de eficiência e inovação, na reputação e na sustentabilidade da organização.

Por meio do Inclusion Compliance é possível reduzir impactos negativos pelo não cumprimento das normas de acessibilidade, da Lei de Cotas (art. 93, Lei nº 8.213 de 1991) e propor políticas internas de não discriminação e ações afirmativas para ampliar a representatividade de grupos minorizados.

O que é acessibilidade?

Acessibilidade, por sua vez, diz respeito ao acesso fácil, refere-se a algo compreensível e razoável, ou seja, a ausência de barreiras para acessar algo.

No universo das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, implica a possibilidade e condição de alcance para utilização, de forma segura e autônoma, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações. 

Prevista no artigo 53 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) L13146, a acessibilidade “é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social”. 

Acessibilidade à informação e à comunicação no mundo digital

De volta à “Economia de Dados”, esta pressupõe que por meio de tecnologias da informação e comunicação as pessoas acessem e produzam dados digitais para as mais diversas finalidades. Por exemplo: 

  • Colher informações e preencher um formulário para a renovação da CNH (Carteira Nacional de Habilitação) pelo website do DETRAN.
  • Acessar uma rede social em busca de pessoas que tenham os mesmos interesses e, ao mesmo tempo, receber propaganda de produtos e serviços que interessam.
  • Ter acesso aos trabalhos e às intenções de quem se candidata a uma vaga no legislativo para decidir, de forma consciente, em quem votar na próxima eleição. 

Nossas necessidades são, cada vez mais, demandadas e supridas no ambiente digital. Diante deste cenário, é evidente que a falta de acessibilidade digital, em razão de barreiras socioeconômicas, geracionais ou relacionadas às condições de pessoas com deficiência é uma barreira à participação efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, limitando o exercício pleno da cidadania. 

De acordo com o Guia de acessibilidade digital para marcas diversas e inclusivas de iniciativa do MWPT e Google, ao considerarmos que cerca de 1,3 bilhões de pessoas no mundo têm algum tipo de deficiência e encontram inúmeras barreiras para interagir no universo online, estamos diante de um contexto que envolve valores éticos e políticas públicas expressas na forma de leis e demais normas, como veremos adiante.

O que diz a lei brasileira em relação à acessibilidade digital?

No âmbito das normas internacionais, a acessibilidade digital está prevista na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo (ONU, 2007). A convenção foi incorporada à nossa Constituição Federal, no rol dos direitos e garantias individuais por se tratar de tema de Direitos Humanos (art. 5º, parágrafo 3º), e determina a promoção do acesso das pessoas com deficiência “a novos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet” (art. 9, 2, “g”). 

Posteriormente, a LBI foi promulgada e tornou obrigatória “a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente” (art. 63).

Em relação às normas para o uso da internet no Brasil, contamos com a lei federal conhecida como Marco Civil da Internet (MCI) L12965 que tem como fundamentos: os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais, assim como, a pluralidade, a diversidade e a finalidade social da rede (art. 2º, incisos II, III e VI). 

Para tanto, a lei dispõe que “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania” e aos usuários e usuárias é assegurada a “acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário” (art. 7º, caput e  inciso XII).

Uma das finalidades do MCI é a proteção dos dados pessoais de quem utiliza a web. Nesse sentido, contamos com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) L13709, mais específica, que dispõe a respeito de operações realizadas com esses dados. 

A lei busca regular a coleta, o armazenamento e o processamento desses dados, não raro utilizados de forma ilícita, impondo obrigações às organizações e prevendo inúmeros direitos à pessoa (titular dos dados). O objetivo é garantir o exercício de “direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade” (art. 1º), aspectos inerentes ao livre exercício da cidadania nos nossos dias. Em razão da importância do tema na sociedade atual, a proteção de dados pessoais foi inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais da nossa Constituição Cidadã (art. 5º, inciso LXXIX), em 10/02/2022.

Ao proteger os dados pessoais da pessoa natural, a LGPD garante que informações claras, precisas e facilmente acessíveis sejam fornecidas de maneira simples e adequada ao entendimento, por diferentes gerações a respeito do que será feito com seus dados pessoais. 

Portanto, quando uma pessoa é solicitada, por uma organização, a consentir com a coleta e o processamento de seus dados para determinado fim, deverá manifestar-se de forma livre, devidamente informada e inequívoca nesse sentido (art. 6º, inciso VI, da LGPD). Quando isso se der por meio de um website, a ausência de acessibilidade digital pode induzir o usuário ou usuária a erro e consentir mediante desinformação, configurando uma infração sujeita às penalidades da LGPD.

O não cumprimento das obrigações contidas na LGPD pelas organizações implica riscos de penalidades na esfera administrativa, com possível repercussão judicial civil ou trabalhista. Na lei, há previsão de multa administrativa que pode chegar a 2% do faturamento da empresa, limitada a 50 milhões de reais por infração, além de bloqueio ou eliminação dos dados pessoais.

Ética e acessibilidade digital

Quanto aos valores éticos do nosso tempo, um bom norte é a Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital (Bruxelas, 2022), cuja finalidade é promover a transformação digital dando prioridade às pessoas, beneficiando cidadãos, cidadãs e empresas, contribuindo para uma sociedade e economia justas. A declaração determina que soluções tecnológicas devem respeitar e permitir os direitos individuais e promover a inclusão, especialmente, das pessoas idosas,  com deficiência, vulneráveis, entre outras (Capítulo II).

Cabe destacar, que o processo de adesão do Brasil à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cujas tratativas tiveram início em 1990 em razão do fortalecimento do multilateralismo e cooperação econômica entre seus membros, está em fase de discussão. 

Nessa etapa, o país será avaliado em diferentes setores, inclusive na área digital, pois os membros da OCDE devem assegurar padrões adequados de proteção de dados pessoais por meio de leis e normas de segurança e confiança de quem utiliza a internet e consome conteúdo online, em conjunto com o combate à desinformação e a promoção de princípios democráticos e de direitos humanos relacionados às operações digitais.

Diante da transformação digital e das relações sociais do nosso tempo, a promoção da acessibilidade digital às pessoas com deficiência é indispensável ao exercício pleno da cidadania por estas, e inerente à integridade das organizações, públicas e privadas, por meio da conformidade às leis e demais normas e aos valores éticos, em especial a justiça, o respeito, a liberdade e a responsabilidade social. 

Organizações conduzidas pela  integridade devem valer-se do Inclusion Compliance para a implementação ferramentas e indicadores em busca de resultados contínuos e efetivos com vistas à inclusão e à construção da cidadania digital.

*Sobre quem escreveu este artigo:

Denise Guedes: Advogada, certificada em Gestão de Riscos, Compliance e LGPD pela FIA e pós-graduanda em Direito Digital pela ESA/OAB. Certificação em Proteção de Dados (EXIN-PDPE). Integrou o grupo de estudos Empresas e Direitos Humanos na Sociedade da Informação do Mestrado da FMU. Fundadora do IN Movimento Inclusivo.

César Eduardo Lavoura Romão: Advogado. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Consultor e palestrante da Goodbros Empatia e Comunicação Inclusiva.  Professor na Faculdade de Direito da FMU. Professor na Pós-Graduação de Governança Corporativa e Compliance da FMU. Instrutor do IN Movimento Inclusivo.


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