Talita Pagani: “A compreensão sobre acessibilidade web cognitiva ainda está aquém do necessário”

A Acessibilidade Web Cognitiva estuda aspectos e condições que podem afetar as pessoas com deficiências cognitivas na realização de tarefas em websites.



Foto de uma mulher morena com microfone próximo à boca. Ela usa óculos, tem cabelos longos, usa franja e está em pé.
Talita Pagani durante evento BrazilJS. Foto: Reprodução vídeo Acessibilidade Web Cognitiva – BrazilJS Conf 2016.

A primeira vez em que Talita Pagani foi apresentada ao conceito de Desenho Universal e acessibilidade na web foi em 2011, durante seu mestrado em Ciência da Computação.

Hoje envolvida com a causa da acessibilidade para deficiências cognitivas, a UX Designer acumula mais de 12 anos de experiência na área de TI e é uma das apoiadoras do Web para Todos.

Conversamos com Talita para conhecer mais sobre sua história e seu envolvimento com a acessibilidade digital. Confira a entrevista na íntegra:

Web para Todos: Por qual motivo você começou a se interessar por acessibilidade web cognitiva? Quando foi?
Talita Pagani: Eu fui adquirir uma percepção mais abrangente sobre acessibilidade quando fiz uma disciplina de Interação Humano-Computador no mestrado, em 2011. Fui apresentada ao conceito de Desenho Universal pela professora Vânia Neris. Quando retornei ao mestrado que havia trancado, em 2013, falei para meu orientador, Professor Ednaldo Pizzolato, que gostaria de realizar um projeto voltado para acessibilidade. Fomos refinando as ideias e percebi que ainda faltavam pesquisas aplicadas sobre deficiências cognitivas e como estas pessoas consomem conteúdos web. Eu mesma tinha pouco conhecimento sobre o assunto, e isso me incomodou. Esse incômodo, que me encheu de dúvidas e questionamentos, fez com que eu quisesse desenvolver algo sobre o tema. Pesquisando sobre a área, descobri que lidar com transtornos, condições ou deficiências cognitivas era bem mais complexo do que as deficiências visuais ou auditivas, e dificilmente era possível fazer algo que atendesse a todos. Então, resolvi voltar meus estudos para o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), um tema que meu orientador já havia trabalhado em parceria com outro professor.

WPT: Qual é a explicação mais prática e rápida de contar ao mundo sobre o que é Acessibilidade Web Cognitiva?
Talita: A Acessibilidade Web Cognitiva estuda aspectos e condições que podem afetar as pessoas com deficiências cognitivas na realização de tarefas em websites. Entre estes aspectos, estão as questões que podem afetar estes usuários quanto a memória, resolução de problemas, leitura, compreensão verbal, compreensão visual, foco, atenção e compreensão matemática. As deficiências, transtornos ou síndromes estudadas nesta área são diversificadas: dislexia, autismo, síndrome de Down, discalculia, disgrafia, déficit de atenção de hiperatividade, demência, deficiências de aprendizagem em geral e muitas outras.

WPT: Por que seu foco é a acessibilidade web cognitiva, e não a acessibilidade web geral?
Talita: O foco em acessibilidade web cognitiva não exclui lidar com aspectos de acessibilidade geral. Ela é um recorte sobre a temática da acessibilidade que visa estudar os aspectos de interação de usuários com deficiências cognitivas, neuronais ou de aprendizagem. Esse recorte é necessário porque nem sempre as recomendações gerais de acessibilidade podem atender às necessidades específicas destes usuários, devido à diversidade de características. Estas deficiências são complexas, não são precisas (não existe, por exemplo, ter 30% de autismo) e ainda podem se sobrepor. Por exemplo: uma pessoa pode ter dislexia e déficit de atenção. Por isso, é necessário compreender os requisitos de interação, as habilidades e as dificuldades pertinentes a cada condição.

WPT: Quais são as barreiras de interação mais recorrentes e mais graves que você encontra? Como solucioná-las?
Talita: É difícil generalizar dificuldades que afetam pessoas com diferentes deficiências cognitivas, mas existem alguns pontos em comum. Por exemplo: palavras escritas de forma incorreta, ou usando jargões e gírias, pode gerar dificuldade de compreensão do conteúdo para pessoas com déficit de atenção, dislexia, autismo e deficiências de aprendizagem. Páginas que contenham uma estrutura complexa, com muitas ações a serem tomadas, grande volume de conteúdo e banners rotativos, podem causar uma “sobrecarga” cognitiva para estes mesmos transtornos. Portanto, páginas simples, com poucos elementos, são desejáveis. Outro grande problema é usar somente texto ou somente imagem para representar um conteúdo: a imagem (ícone ou pictograma) pode não fazer sentido, ao mesmo tempo em que ter somente palavras pode fazer com que a pessoa demore a reconhecer a ação ou conteúdo. Nesse caso, o ideal é ter sempre texto e ícone ou imagem juntos, tendo uma representação redundante que reforça o conteúdo. Algo que impacta muito pessoas com deficiências cognitivas, principalmente autismo, é a falta de previsibilidade: a pessoa precisa saber onde ela está na página, para onde ela pode ir, por onde ela passou, e as coisas não podem ficar “mudando de lugar” na tela. Se é um processo dividido em etapas, ela deve ter uma informação de fácil reconhecimento sobre onde ela está no processo. Isso é importante até para pessoas com dificuldade de memória. Pop-ups automáticos que aparecem na tela são itens que também causam muito desconforto e confusão – podendo gerar até uma certa ansiedade na pessoa – e devem ser evitadas.

WPT: Quais são as principais dificuldades para conscientizar as pessoas em relação a esse tipo de conteúdo?
Talita: A principal dificuldade é que profissionais de tecnologia tendem a não ter conhecimento sobre o assunto, e muitas empresas do setor não consideram estes usuários como parte do público-alvo dos projetos, o que é uma informação alarmante. Com base em uma pesquisa que fiz em meu mestrado com profissionais de tecnologia, 84% não consideram ou consideram parcialmente pessoas com deficiências cognitivas em seus projetos. 75% dos que não consideram o fazem porque não têm conhecimento suficiente sobre essas deficiências para aplicar em seus projetos, e 54% dizem que a empresa em que atuam não considera que estes usuários seriam parte do público-alvo dos projetos. As pessoas, muitas vezes, nem cogitam estes usuários. Quando se fala em acessibilidade, ainda é muito comum associar somente a deficiências visuais ou auditivas. É preciso que as pessoas percebam que acessibilidade não é só leitores de tela ou usar ALT em imagens. É uma questão de conteúdo adequado, de as pessoas conseguirem compreender o que está na tela, de não se sentirem desconfortáveis, de terem suporte caso não entendam algum número, termo, porcentagem, entre outros. E outra grande dificuldade para conscientizar são os materiais ainda escassos sobre o assunto.

WPT: Como tem sido a recepção de organizações, sociedade e especialistas quando você traz esse assunto em palestras, eventos etc.?
Talita: Em todos os locais, a recepção tem sido excelente, e percebo que estou trazendo um tema que ainda é pouco debatido. As pessoas se surpreendem por nunca terem pensado no assunto e demonstram que têm interesse em saber mais e correr atrás desse conhecimento. O tema sempre gera debates positivos, e pessoas que se enquadram nestas condições se sentem mais compreendidas. Uma situação fantástica foi na BrazilJS de 2016, quando palestrei sobre o assunto e, logo depois, uma participante veio conversar comigo e falar que ela tinha discalculia e que foi a primeira vez que viu alguém mencionar essa condição em uma palestra sobre acessibilidade.

WPT: Ainda é difícil encontrar conteúdo sobre o tema?
Talita: Um pouco menos do que há cinco anos, mas ainda sim. Muito do conhecimento está em inglês ou em artigos científicos que você precisa pagar para ter acesso. Foi algo que identifiquei na minha pesquisa de mestrado também. Um ótimo conteúdo que recomendo sobre o assunto são a publicação da Força-Tarefa de Acessibilidade para Deficiências Cognitivas e de Aprendizagem do W3C, em inglês, os pôsteres traduzidos pelo Marcelo Sales sobre o que fazer ou não fazer ao projetar acessibilidade e as recomendações de acessibilidade voltadas a pessoas com TEA que desenvolvi durante o mestrado.

WPT: As pessoas estão começando a entender a importância de uma web mais inclusiva? Qual é a sua percepção?
Talita: Sim. Percebi que a nova geração de desenvolvedores e desenvolvedoras é muito engajada em inclusão e trata acessibilidade como algo intrínseco de seus projetos. Não é mais um conhecimento adicional – o mercado tem tomado ciência que pessoas com deficiências ou diferentes habilidades consomem conteúdo e produtos da mesma forma que qualquer outro indivíduo. Percebo que muitos perfis em redes sociais procuram descrever as imagens, por exemplo, mas, em relação à acessibilidade web cognitiva, a compreensão sobre o assunto ainda está aquém do necessário.

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