Home office e comunicação digital: a sociedade está preparada para uma adaptação radical?


Foto da Morgana Siqueira em um ambiente fechado. Ela sorri e está com uma das mãos apoiadas na cabeça. Morgana tem cabelos longos, ondulados e pretos, usa colar e pulseira de pérolas e um anel grande em uma das mãos. A outra mão está em cima de um laptop.
Morgana encontra diversos desafios de acessibilidade tanto no online quanto no offline. Foto: Arquivo pessoal.

Por Morgana Siqueira*

Aprendi Libras porque vi surdos que precisavam de mim dentro da empresa. Simplesmente apenas me prontifiquei para isso, porque considero a empatia algo muito importante. É se colocar no lugar do outro. É um desabafo que eu tenho. Ninguém é obrigado a aprender, mas é importante respeitar a Língua. Precisamos estar preparados. O que fará quando encontrar um surdo fluente em Libras? É nesse momento que precisamos usar a nossa consciência para para que todos sintam incluídos. É necessário pensar em várias alternativas.

Devido ao problema de comunicação dentro da empresa, não sabíamos sobre acessibilidade de comunicação. Precisei aprender como transformar a informação para algo bem visual para que todos pudessem entender melhor as coisas. Isso aconteceu em 1997 quando eu tinha 23 anos. Sempre vivi no mundo dos ouvintes com altos e baixos, enfrentando barreiras. Quando vi os surdos, vi que eu não estava sozinha nesse mundo.

Há uma variedade muito grande no universo dos surdos (surdos fluentes em Libras, oralizados, implantados, surdocegos, unilateral, D.A e ouvintes começando com perda progressiva). Todos precisam estar unidos com o mesmo propósito com objetivo de lutar pela mesma causa. A diversidade da surdez e surdocegos não pode ficar de lado. Precisamos mostrar que a surdez possui uma vasta diversidade de perfis. A sociedade desconhece a sua pluralidade. Ela precisa conhecer para colocar em prática a acessibilidade de comunicação.

A experiência durante a minha jornada não foi fácil. Tive desafios nos estudos, na carreira profissional e também no espaço social sobre a barreira da comunicação e seus obstáculos. Naquela época, não existia tecnologia e nem celular com mensagem, era muito difícil. Sofria porque perdia muitas informações importantes, tentava me virar comprando livros, ia muito à biblioteca. Já fui reprovada porque faltava “meio ponto” em algumas matérias. Sabendo que não ia ter condição de continuar, trancava faculdade porque o professor sempre falava que não podia fazer nada por mim, que o problema era meu e eu precisava me virar.

A minha compreensão durante a aula não era a mesma que o professor falava. Já joguei muito dinheiro fora de vários cursos sem acessibilidade que fiz, sem apoio nenhum. É uma luta de anos. Gostava de anotar no caderno, mas nem todos tinham interesse de anotar ou de me emprestar o caderno. Quando eu pedia, era um incômodo para as pessoas. Antigamente, também não existia Intérprete de Libras. Como sou bimodal, também fluente em Língua Portuguesa, precisava de texto, material escrito para ler, mas quase não havia isso. Eu participava de muitos congressos, palestras, eventos. Não havia legenda simultânea nem intérprete de Libras para surdos fluentes. Era muito ruim, eu me sentia completamente excluída.

A comunicação ao longo da minha carreira profissional foi complicada. Quando tinha reunião, lutava para compreender todas as palavras. Eu pegava rápido algumas que conseguia entender e montava o contexto na minha cabeça. Isso me cansava demais porque todo mundo ficava falando ao mesmo tempo e muito rápido. Eu me esforçava com tudo, porque sou dedicada demais tentando prestar atenção. Às vezes, tinha um lapso de falta de compreensão. Só o fato de piscar os olhos era um problema para mim, pois perdia algumas palavras durante a leitura labial.

Teve uma época constrangedora que ouvi uma frase de um colaborador do trabalho: “Se eu falo A, você entende B, se eu falo B, você entende C”. Foi necessário mudar de departamento porque alguns tinham uma dicção difícil, por mais que eu tentava orientar como falar comigo. Isso foi um choque que serviu de reflexão para ver o quanto a sociedade está despreparada para atender as pessoas com surdez. Ninguém tem paciência para adaptar e não está preparado para receber profissionais surdos. Lutei, batalhei muito superando todos obstáculos durante a minha jornada. Continuei estudando e trabalhando com muitos desafios, sem desistir, apesar das barreiras.

Precisamos lutar por diversidade e inclusão com seus valores, respeito, consciência e empatia. Precisamos conhecer as histórias, experiências individuais; compartilhar e interagir pelos direitos de todos, combatendo a segregação. Não podemos banir a diversidade ou a pluralidade porque todos têm suas histórias diferenciadas que merecem ser respeitadas e consideradas.

Em tempos de pandemia, estou vivenciando um momento difícil, com muito estresse. O trabalho em casa complicou muitas coisas devido à falta de acessibilidade digital. Fui obrigada até a cancelar muitas reuniões pela dificuldade de compreensão do conteúdo devido à falta de legenda e de janela de Libras.

Perdi muitos cursos online que precisava fazer. Em alguns, fui obrigada a participar porque o trabalho exigia. Joguei muito dinheiro fora porque não conseguia entender as informações compartilhadas durante essas sessões virtuais.

Atualmente, com o aumento do uso das redes sociais, os surdos estão reclamando muito da falta dos recursos de acessibilidade, como Libras e legenda. E os surdo cegos pela falta de descrição nas imagens. A falta desses recursos compromete a vida de muita gente.

Precisamos dos recursos de acessibilidade: legenda nos vídeos, a janela de Libras visível para surdos fluentes em Libras, descrições nas imagens, audiodescrição para pessoas com deficiência visual, legendas ao vivo e em vídeos na internet.

Vejo muitos surdos fluentes em Libras reclamando porque muitas lives de música não têm intérpretes e, quando têm, alguns não contam com boa visualização. A janela de Libras deve seguir sempre o padrão para facilitar a visualização, pois o surdo é visual. Em outros países, a janela é maior, visível ao lado, além de legenda para surdos não fluentes em Libras.

Precisamos também colocar em prática a hashtag #PraCegoVer para descrição de imagens nas redes sociais. Ultimamente, tenho visto mais pessoas com essa consciência, colocando a descrição em prática. É necessário pensarmos no todo.

Outro ponto importante é o uso da transcrição simultânea do áudio para legenda, que precisa ainda ser aperfeiçoada. Elas ajudam muito em reuniões presenciais e virtuais para que pessoas surdas, como eu, não fiquem perdidas. Precisamos pensar na diversidade surda por completo e não de forma parcial ou superficial.

Para tudo isso acontecer na prática, existem muitas leis. Umas delas é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Lei 13.146/2015. Ela determina que é obrigatória a inclusão da acessibilidade comunicacional, que precisa ser refletida sobre a importância de valores da pessoa com deficiência. Estamos vivendo na era digital e precisamos pensar no impacto disso na vida de todas as pessoas. O que faremos para que todos sejam incluídos, que tenham um acesso fácil e informações acessíveis?

Isso porque o mundo é movido por cinco sentidos e nós temos o nosso mapa de identificação que vai de acordo com a nossa necessidade. Ninguém é igual, todos são diferentes. Não podemos colocar todo mundo “na mesma panela”, criando a sua própria segregação fazendo que os outros se sintam excluídos. Não adianta querer anular uma coisa e tentar colocar outra coisa. Isso não vai funcionar. Precisamos ser estimulados por todos, não somente por imagens. Precisamos pensar também na descrição, na sensação, na tecnologia assistiva, avançando com a tecnologia de ponta por uma web para todos.

*Morgana Siqueira é paulistana, surda bilíngue: oralizada e fluente em Libras, Capelã de Ação Humanitária 25 anos no trabalho social voluntária, Servidora Pública Municipal, Pós-graduada em Libras – Inclusão, Master em Programação Linguística com ênfase da Saúde Mental. É também Gestora de pesquisa migratória, ex-assessora parlamentar do Órgão Federal, Secretária Nacional do Onas no Brasil Voluntária, ativista na luta da política pública social, com objetivo de realizar conscientização dos direitos humanos na “Pacificação” da pluralidade dos surdos e de todos.
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