Desafios e oportunidades de pesquisa em acessibilidade e inclusão digital no Brasil

Artigo da Talita Pagani traz reflexões sobre o tema.



Foto de quatro pessoas olhando a tela de um laptop. Há três mulheres e um homem com uma das mãos no teclado.
Grupo de pessoas olham para a tela de um laptop. Foto: Pixabay / Creative Commons.

Artigo por Talita Pagani*

Anualmente, ocorre o Simpósio Brasileiro de Fatores Humanos em Sistemas Computacionais, também conhecido como IHC, um importante evento científico para debate e apresentação de pesquisas acadêmicas e industriais sobre inovação em aspectos relacionados a tecnologias de comunicação para uso das pessoas. No ano de 2017, o evento ocorreu em Joinville – Santa Catarina.

Em 2012, o IHC organizou um painel para definir Grandes Desafios de Pesquisa em Interação Humano-Computador no Brasil (GrandIHC-BR) para os próximos dez anos, de modo a traçar temas de pesquisa relevantes que ainda estava sendo pouco explorados. Esses desafios visavam expandir o desafio 4 da Sociedade Brasileira de Computação intitulado “Acesso Participativo e Universal do Cidadão Brasileiro ao Conhecimento”, proposto em 2006 como um dos desafios de pesquisa em computação em geral.

Um dos cinco desafios definidos foi Acessibilidade e Inclusão Digital. Em 2017, cinco anos após a proposta, o simpósio organizou um Fórum do GrandIHC-BR para avaliar o impacto que esses desafios tiveram na comunidade acadêmica e no mercado e o quais obstáculos ainda temos a enfrentar.

Sob coordenação da Prof. Drª Simone Bacelar, do Núcleo de Acessibilidade e Usabilidade da UNIRIO, participei, em conjunto com outras pesquisadoras, da escrita do artigo “Acessibilidade e Inclusão Digital: Utopia ou um Grande Desafio?”, publicado originalmente como “Accessibility and Digital Inclusion: Utopia or a Great Challenge?”.

A seguir, apresento os resultados discutidos e relatados no Fórum.

Evolução da acessibilidade e inclusão digital na comunidade acadêmica de IHC e UX

Acessibilidade parece ser um tema recorrente de pesquisas acadêmicas na área de IHC. Entretanto, é uma temática proporcionalmente menos explorada dentre outros tópicos de interesse, ainda que seja de grande relevância social. Em um estudo conduzido por Granato e outros autores (2015), somente 12% de todos os trabalhos publicados nas 18 edições do IHC de 1998 a 2015 eram relacionados à acessibilidade. Esse foi um dos motivos que incentivou a definição do desafio de pesquisa relacionado à acessibilidade e inclusão digital.

De 2006, quando o desafio foi lançado pela SBC, até 2012, a quantidade de trabalhos sobre acessibilidade dobrou nos principais simpósios da área, não apenas o IHC. A maioria das pesquisas abordavam acessibilidade digital como um todo, independente de deficiências, e mais da metade dos trabalhos estavam relacionados à web.

Voltando ao trabalho de Granato, os trabalhos publicados no IHC até 2015 eram focados em deficiências visuais, auditivas e motoras, sendo que as deficiências cognitivas ou intelectuais possuíam um menor índice de trabalhos publicados. Essa é mais uma lacuna que será apresentada a seguir no Desafio 2.

Desafio 1: Adoção de recomendações de acessibilidade em sites e publicações científicas

A maioria dos sites governamentais e de instituições de ensino ainda não são plenamente acessíveis. O Movimento Web Para Todos já relatou algumas destas barreiras em uma avaliação de sites de universidades realizada em 2017. Mesmo com a existência de recomendações internacionais e nacionais e com a Lei Brasileira de Inclusão em vigor desde 2016, nota-se que muitos desses sites de interesse de um grande público diversificado não atendem a critérios mínimos de acessibilidade.

Outro fator preocupante é a falta de acessibilidade das publicações científicas, como artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Geralmente, não há exigência para que esses documentos sejam acessíveis e, assim, criam-se barreiras para consumir essas informações.

Isso nos leva a alguns questionamentos a serem pesquisados:

  • Por que o grau de acessibilidade em sites e publicações da comunidade científica ainda é baixo?
  • Existe, de fato, uma dificuldade no entendimento das recomendações de acessibilidade, mesmo com a adaptação ao contexto brasileiro? Ou outras questões estão envolvidas nessa dificuldade?

Desafio 2: Acessibilidade digital com enfoque em neurodiversidade

Deficiências cognitivas, neuronais ou de aprendizagem (DCNA) são condições, síndromes ou transtornos relacionados ao desenvolvimento da memória, linguagem, comunicação, e letramento, dentre outras funções cognitivas e afeta cerca de 2,5 milhões de brasileiros, segundo o Censo do IBGE de 2010.

As DCNAs, como o autismo ou a dislexia, se manifestam de forma diferente em cada indivíduo e devem ser consideradas nessas particularidades em projetos de software. Por conta dessa complexidade, ainda são pouco exploradas em pesquisas e na indústria de software, por possivelmente serem consideradas mais “difíceis” de serem trabalhadas. Ocorre também que elas ainda são endereçadas em recomendações de IHC e em técnicas de avaliação de usuários em nível aquém do ideal.

Assim, é preciso entender:

  • Quais as dificuldades enfrentadas por profissionais e pesquisadores de computação para considerar usuários com deficiências cognitivas, neuronais ou de aprendizagem em seus projetos?
  • Quais ações podem ser realizadas para aumentar a conscientização sobre neurodiversidade e as especificidades de interação para estas deficiências?

Desafio 3: Acessibilidade na comunicação entre usuários surdos e interfaces web

Embora existam muitos trabalhos e ferramentas com foco em pessoas surdas, ainda faltam recursos para atender aos surdos pré-linguísticos, as pessoas que ficaram surdas antes de aprender a falar e se comunicam utilizando LIBRAS como primeira língua.

Mesmo com ícones e ferramentas de tradução automática para LIBRAS, o conteúdo da web ainda é muito textual. E as ferramentas de tradução acabam apresentando problemas como traduções incorretas, o uso inadequado de sinais resultantes do uso de tradução de palavra por palavra, o uso de pronomes pessoais inadequadamente, criando dificuldades no entendimento do conteúdo original que está traduzido, ausência de expressões faciais ou corporais.

Com isso, temos como questionamento:

  • Quais as especificidades envolvidas na promoção da acessibilidade e da inclusão de pessoas surdas, considerando a particularidade da comunicação dos surdos pré-linguísticos, cuja linguagem em uso (LIBRAS) é bem distinta e a tradução é recurso bastante restrito para apoiar a interação com sistemas computacionais?

Desafio 4: Analfabetismo funcional e inclusão digital para agricultura familiar

Falamos sobre acessibilidade e inclusão digital focando em deficiências, mas esquecemos das pessoas com baixo letramento e analfabetismo funcional que, por uma série de razões, podem ter dificuldade de compreender o conteúdo apresentado na web.

As pessoas com analfabetismo funcional possuem dificuldades em leitura, escrita, interpretação de textos, cálculos e ciências. Nas áreas rurais há cerca de 44% de pessoas com analfabetismo (sem letramento) ou analfabetismo funcional, enquanto esta proporção é de 24% nas áreas urbanas (Fonte: Instituto Paulo Montenegro).

A população da área rural que atua com agricultura familiar é de grande importância para a economia, pois é responsável por fornecer 70% dos alimentos consumidos no mercado interno. Sem uma inclusão educacional e digital adequada, estas pessoas podem ter ainda mais dificuldade em aderir à tecnologias que poderiam melhorar seus processos de produção.

Isso nos leva aos seguintes questionamentos:

  • Quais as limitações das iniciativas de inclusão digital voltadas para áreas não urbanas em geral e para a agricultura familiar em particular?
  • As interfaces construídas levando em consideração o público com pouca experiência digital incluem esse perfil de usuários ou essas pessoas estão sendo desconsideradas?
  • Há como avaliar quantitativamente a acessibilidade gerada pelo sucesso da inclusão digital?
  • Como prover, mensurar e garantir aplicação da acessibilidade ao conteúdo de informação geográfica disponível em softwares agrícolas?

Desafio 5: Tecnologias assistivas e deficiências múltiplas

Grande parte das pesquisas envolvendo pessoas com deficiência e tecnologia assistiva focam em apenas uma deficiência. Porém, indivíduos podem apresentar múltiplas deficiências, o que é chamado na área da saúde de comorbidade.

Uma pessoa surda pode não ter um dos braços também, uma pessoa com autismo pode apresentar baixa visão, por exemplo. Pessoas idosas tendem a apresentar mais de uma limitação que pode se enquadrar como deficiências múltiplas.

Assim, é preciso compreender:

  • Quais melhorias e/ou adaptações podem ser feitas nos softwares de assistência (ou tecnologias assistivas) existentes para proporcionar maior autonomia da pessoa brasileiro com deficiência?

Como construir e avaliar interfaces acessíveis a indivíduos com múltiplas deficiências?

Como podemos contribuir para abordar os desafios apresentados?

  • Identificar os fatores e perspectivas (econômicas, sociais, tecnológicas) que impactam uma ação mais efetiva da comunidade científica na produção de conteúdo web e científico acessível;
  • Fomentar e apoiar (com métodos, técnicas e recomendações baseadas em diretrizes de acessibilidade e usabilidade) o desenvolvimento de interfaces que considerem os variados contextos e a diversidade cultural brasileira;
  • Definir e promover recomendações de IHC especializadas em deficiências cognitivas, neuronais e de aprendizagem, bem como métodos e técnicas de avaliação que considerem aspectos éticos ao lidar com usuários neurodiversos;
  • Avançar, como proposto no Grande Desafio de 2012, no desenvolvimento de estruturas ontológicas para representar a diversidade, inferir sobre ela, e propiciar um sistema integrado.

Conclusão

Os desafios de pesquisa apresentados no GrandIHC-BR não se restringem à área acadêmica. É preciso um esforço conjunto da indústria para fomentar pesquisas, desenvolver artefatos que removam estas barreiras e fazer com que estas soluções cheguem até a população.

Convido a comunidade a contribuir para derrubar estes obstáculos de acessibilidade e inclusão digital. Professores de cursos de graduação e pós-graduação: incentivem também seus alunos a realizarem trabalhos e pesquisas na área.

Por fim, como citado ao final do artigo (Bacelar et al, 2017): “Interações impossíveis tornam-se cada vez mais viáveis com o uso de tecnologias digitais. Se essas interações, antes inimagináveis, são agora realidade, não temos como pensar que a acessibilidade e a inclusão digital são uma utopia. Nós acreditamos apenas que temos um grande desafio pela frente!”

Referência

Accessibility and Digital Inclusion: Utopia or a Great Challenge?

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*Talita Pagani é UX Designer.

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