Por Gigi Villari*
A inteligência artificial (IA) está cada vez mais presente no nosso dia a dia, facilitando tarefas, otimizando processos e até surpreendendo com sua criatividade. Mas ela também pode ir muito além: ser uma grande aliada na construção de um mundo mais inclusivo. Quando o assunto é acessibilidade digital, a IA tem o potencial de derrubar barreiras e tornar a tecnologia mais acessível para todas as pessoas.
Neste texto, vamos descobrir como essa parceria pode transformar vidas e trazer mais equidade ao universo digital. Este conteúdo é fruto de um debate que tivemos na reunião da Liga Voluntária no dia 3 de dezembro deste ano, que contou com a participação especial de Reinaldo Ferraz, líder de iniciativas de acessibilidade digital do NIC.br e um dos nossos embaixadores, e Henri Fontana, gerente técnico de programas e acessibilidade do Google nos Estados Unidos.
Desafios e perigos da IA em relação à acessibilidade digital
Embora a inteligência artificial tenha potencial para revolucionar a acessibilidade digital, ela também traz desafios importantes que não podem ser ignorados. Questões como vieses nos algoritmos, falta de padronização em tecnologias assistivas e o risco de exclusão de grupos específicos mostram que nem sempre essas soluções funcionam para todas as pessoas. Além disso, o uso irresponsável ou mal planejado da IA pode criar novas barreiras, em vez de derrubá-las.
“O grande desafio em tratar a questão da IA é acreditar sem restrições no que ela entrega para a gente. O uso indiscriminado como um grande oráculo que vai resolver todos os nossos problemas é muito delicado”, comenta Reinaldo. Ele reforça que é possível utilizar a inteligência artificial para criar textos mais acessíveis, fazer descrições de imagens ou criar códigos melhores – sempre num lugar de suporte e auxílio; nunca de “verdade absoluta” ou única opção.
Além de cuidados importantes com questões de privacidade e segurança, é preciso lidar com um grande problema: a falta de conteúdo em português. Existe um repertório muito grande em outros idiomas – principalmente em inglês -, mas em português ainda é algo escasso.
Outro aspecto que deve ser observado é que muitas empresas e produtos que usam o termo “IA” nada mais são, na prática, do que scripts que fazem alguns reconhecimentos e retornam o resultado com base naquele repertório pesquisado.
“A inteligência artificial, na verdade, não é algo novo. Ela começou a ser concebida no final dos anos 50, por profissionais de computação”, explica Henri, acrescentando que, por conta de restrições tecnológicas, nada de empolgante aconteceu até o começo dos anos 2000, quando uma série de avanços e desenvolvimento começaram a surgir.
O especialista explicou que, para se ter um modelo de inteligência artificial hoje, é preciso treiná-lo. “É possível fazer isso fazendo com que ele navegue pela internet, colete tudo o que for possível e vá aprendendo com os textos disponíveis, livros, sites e todo o material disponível”, complementa, ressaltando que o perigo é que, como esse modelo aprende com tudo, ele pode aprender todas as tendências, preconceitos e ideias de exclusão que são comuns.
Sendo assim, no treinamento desses modelos de linguagem, é muito importante que as pessoas responsáveis também levem em conta ensiná-los a identificar e lidar com essas tendências.
Tecnologias baseadas em IA para melhorar a acessibilidade digital
É inegável que a inteligência artificial está abrindo novas portas para a inclusão digital, trazendo tecnologias que prometem transformar o acesso à informação e aos serviços online. Desde leitores de tela mais inteligentes até tradutores em tempo real e ferramentas de reconhecimento de voz, as soluções baseadas em IA têm o potencial de tornar o ambiente digital mais acessível para milhões de pessoas com deficiência. Mas como essas tecnologias estão sendo desenvolvidas e aplicadas?
O Be My Eyes (seja meus olhos, em português) é um exemplo de solução inspiradora. Na prática, o aplicativo possibilita que pessoas cegas enviem fotos para que tenham acesso a uma descrição em tempo real. No início, essa tarefa era realizada remotamente por pessoas voluntárias do mundo inteiro. Mas de um tempo para cá, o serviço começou a acrescentar inteligência artificial no processo para ganhar mais agilidade.
Outro exemplo interessante foi apresentado durante a World Wide Web Conference deste ano. “Era um experimento em que um grupo de pessoas universitárias tentava adicionar em vídeos uma audiodescrição criada automaticamente por inteligência artificial. Usando um vídeo como base, o grupo criou alguns scripts que identificavam o momento em que havia uma pausa na fala. Quando esse momento era detectado, o script capturava um frame (quadro) daquele vídeo, enviava para uma IA, que descrevia aquele cenário, depois colocava numa ferramenta para gerar áudio e, depois, calculava o tempo disponível entre as duas falas para poder acrescentar o áudio,” relembra Reinaldo, que participou do evento.
Já o NotebookLM, do Google, é uma espécie de ferramenta de anotações com inteligência artificial embutida. “Todo o conteúdo que você escreve, você faz o upload. A solução aprende aquele conteúdo e você gera uma tela de conversa. É possível, por exemplo, gerar automaticamente um podcast com duas pessoas conversando a partir do assunto que você fez do upload, e soa extremamente natural”, explica Henri.
A ferramenta pode, por exemplo, ajudar pessoas com dislexia, que têm dificuldade em ler textos longos ou alguma outra neurodivergência que prejudica a interpretação e a compreensão dos fatos. Ela “digere” os assuntos e transforma num podcast mais fácil de consumir. Por enquanto, o experimento está disponível apenas na língua inglesa.
O Google Lookout é outra ferramenta gratuita que faz uso de inteligência artificial e é uma aliada da acessibilidade. Disponível para dispositivos Android, a solução auxilia pessoas de baixa visão ou cegas a interagirem com o ambiente.
“Usando a câmera do celular, o aplicativo vai procurar descrever o que está no campo de visão da câmera. Você pode ir num supermercado e ele descreve o que está na gôndola, por exemplo, ou te ajuda a identificar diferentes notas de dinheiro”, detalha o especialista.
Como garantir que a IA seja desenvolvida de forma acessível?
Garantir que essas tecnologias sejam desenvolvidas e implementadas de forma inclusiva é um dos maiores desafios da atualidade. Como evitar que a IA reproduza ou amplifique exclusões existentes? Quais cuidados éticos devem ser tomados ao aplicá-la no campo da acessibilidade?
“Essas ferramentas utilizam conteúdos abertos da web. Vão coletando, entrando em sites, em páginas, em links, e armazenando esse material. Então, como vai ficar a navegação dos próximos anos?”, questiona Reinaldo. Ele exemplifica: hoje, por exemplo, o próprio Google já traz um resumo, dependendo do que você pesquisa, feito pelo Gemini, a inteligência artificial autoral da empresa. “Será que no futuro essas ferramentas vão começar a tirar seus links e vão gerar conteúdos próprios a partir de inteligência artificial, pegando os resultados daqueles links e gerando um resumo?”, indaga o especialista.
Reinaldo acredita que o modelo de web que existe hoje, principalmente de hiperlinks, deve sofrer mudanças consideráveis – e isso também acaba impactando o acesso de pessoas com deficiência.
Na opinião de Henri, uma forma de garantir que a inteligência artificial seja inclusiva é justamente profissionais do setor identificarem os preconceitos ou as tendências excludentes do conteúdo que estão consumindo, para se treinarem, ponderarem e excluírem isso da sua base de conhecimento.
Além disso, o especialista reforça a importância da supervisão da sociedade civil como um todo, sempre avaliando as ferramentas. “É muito importante sermos conscientes sobre esse tendencionismo que existe hoje no conteúdo e garantir que ele não contamine as ferramentas de inteligência artificial”, assegura.
Segurança e acessibilidade vão convergir com o uso da IA?
Uma das grandes qualidades das técnicas de IA que existem hoje é justamente fornecer grandes melhorias numa área importante, que é o reconhecimento de padrões – sejam eles facial, de palavra escrita ou de uma maneira geral.
Nesse contexto, há uma grande possibilidade de progresso nos aspectos de segurança. “As operadoras de cartão de crédito já usam modelos de inteligência artificial para analisar padrões de compras. Ela reconhece o padrão de uso de um cartão de crédito para uma determinada pessoa e, quando alguma coisa sai do usual, ela imediatamente bloqueia o cartão e manda uma mensagem para tentar coibir a fraude”, exemplifica Henri.
Em relação à convergência, o especialista acredita que ela aconteça em alguns aspectos justamente relacionados ao reconhecimento de padrões, que podem ser utilizados tanto para segurança – por exemplo, identificar coisas fora do normal -, quanto para acessibilidade – identificar padrões de uso num texto ou modificar o conteúdo de algum material para que ele seja mais otimizado para leitores de tela ou para descrever atributos físicos para uma pessoa cega, por exemplo.
Outro aspecto de extrema relevância que deverá ser considerado é a adoção de formas alternativas de autenticação. “Não dá para fazer por reconhecimento facial? Então, você deve, de repente, poder preencher um formulário ou entrar em contato por algum outro canal”, explica Reinaldo. “Acho que tudo que vai ser implementado e que envolve, principalmente, a autenticação, sempre andará lado a lado com esses cuidados com segurança e privacidade. Eles vêm como algo positivo para ajudar”, conclui.
Testes automatizados e acessibilidade
A utilização da IA para realização de testes de acessibilidade automatizados também vem ganhando força nos últimos tempos, contribuindo para o mapeamento de barreiras em sites e aplicativos que dificultam a navegação de pessoas com deficiências mais severas.
No entanto, é preciso considerar que esses recursos ainda estão longe de substituírem as validações e análises humanas. “Um caminho é começarmos a identificar pontos que os validadores hoje não detectam. Por exemplo, a análise de conteúdo em vídeo – detectar se existe alguma informação que pisca por mais de três vezes de uma forma que não esteja de acordo com a WCAG”, exemplifica Reinaldo.
“Eu diria que ainda estamos na infância da utilização de inteligência artificial para facilitar testes de acessibilidade. Por quê? Porque o teste de acessibilidade é algo complexo e difícil, se comparado com o teste regular de software, pelas múltiplas combinações de ferramentas assistivas e também de tipos de deficiência”, opina Henri.
*Gigi Villari é gestora de projetos da Espiral Interativa e integrante da Liga Voluntária do Movimento Web para Todos.